A sombra de Deus
Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor
desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu
filho Filipe pelo seu pequeno kispo
azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do
outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais
movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse
misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe
gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a
sombra de Deus.
Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica
cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha
Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez
de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada.
Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do
Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de
Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao
mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e
correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do
Hospital de Santa Maria.
Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra
de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre
tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira
alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a
dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida.
Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira
Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar
na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.
Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a
certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza,
que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida
contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido
muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal
«os filhos da morta já não eram irmãos».
José do Carmo Francisco
(Fotografia de autor desconhecido)