Poema algures
Há um poema. Um certo poema. Julgo que esse poema é feito a partir de
memórias sedimentadas nas mais pequenas gavetas do teu coração. Assim como um
guarda-jóias invisível, um estojo antigo, passado de mão em mão, na mesma família,
por sucessivas gerações de mulheres.
Há um poema. Um poema algures onde deixaste o pó das brincadeiras de
infância, os jogos, as cantigas, as lengalengas. Tudo aquilo que poderia
sugerir um mundo organizado entre os sonhos e os seus resultados. Um mundo onde
a ternura era uma janela a fechar o vento mais frio do Inverno desse tempo. Há
um poema. Procuro-o nos teus gestos hoje mais comedidos e reservados, na tua
voz onde se insinua a força das pausas, a grande nuvem cinzenta do tempo de
hoje onde a tristeza faz a sua sementeira multiplicada.
Há um poema. Deve haver mesmo esse poema num lugar que só tu sabes. Pode
não ser ainda poema, pode não ter ainda forma mas eu pressinto que ele existe,
funciona, respira, articula-se entre as palavras e os sentimentos, sobe das
águas mais escuras e lodosas para uma superfície onde a limpidez dita a sua
regra.
Há um poema. Persigo-o ansioso todos os dias apenas guiado pela intuição e
pelo instinto de julgar o teu rosto o rosto desse poema, sua origem e seu destino,
sua força e sua razão de ser. Há um poema. Eu sei. Hei-de escrevê-lo a partir
da límpida pontuação do teu olhar. Amanhã. Ou num amanhã futuro. No dia da tua
total revelação. No lugar onde, a partir dos teus olhos, seja possível instalar
uma harmonia igual à das brincadeiras da infância quando o Mundo estava
organizado ente os sonhos e os seus resultados.
José do Carmo Francisco
(Ilustração de Earl Christy)