sexta-feira, 25 de maio de 2018

Retrato breve de Lucas no Paragon



Retrato breve de Lucas no Paragon

Meu neto Lucas atravessa o Paragon
Entre patos no lago e papagaios de papel
Entre o trânsito intenso e o planetário.
Nasceu em 2011 no dia sete de Abril
Mas é segundo só nesta cronologia
 Dos quatro netos não faço distinção.
Em sonhos e pesadelos entram todos
Ninguém fica de fora nestes enredos
Nem Tomás, Lucas, Pedro ou António.
Lucas não conhece ainda as biografias
De Charles Gounod e John Stuart Mill
E passa muita vez à porta das casas.
Seu destino é outro, é apenas ser feliz
Sem olhar para o lado nem parar
Porque tudo na vida é um mistério.
Lucas atravessa devagar o Paragon
Em dia especial de não ir à Escola
E na forte razão de ser deste poema.     

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Poema periférico para António Bárcia



Poema periférico para António Bárcia

Já não se morre como no passado
Hoje todo o morto tem um funeral
Com urna e fato pago pela Santa Casa.
Muitas vezes vai apenas um funcionário
No acompanhamento trinta dias depois
Do corpo chegar à Morgue de Santa Maria.
Porque a lei mudou a vala comum acabou
Mas seu nome ficou nas fichas dos livros
E no coração de quem não o vai esquecer.
Morrer não é apenas deixar de ser visto
Nem as estradas têm curvas como antes
Morrer é sempre um mistério, outra coisa.
Talvez calhe e seja o Pedro a acompanhar
A sua urna se ninguém se chegar à frente
Para tratar de todas essas formalidades.
Tenho um livro onde as suas palavras
Aparecem num tão discreto anonimato
Mas a posteridade essa vai continuar.

José do Carmo Francisco                          
   

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Poema periférico para a Farmácia



Poema periférico para a Farmácia

Não é comum este nosso lugar-comum
De espaço no balcão ponto de encontro
Onde se recebe apenas só o que se dá.
Às vezes entram cheiros de roupa lavada
De pedras, sabão e vozes de mulheres
Na ribeira que um dia por aqui passou.
Sabemos o princípio activo das lágrimas
E o excipiente da moderna amargura
Temos literatura explicativa das dores.
Só vendemos tudo com receita médica
E mantemos fora do alcance das crianças
No comércio onde há algo mais que troca.
A transacção foi concluída com angústia
Fica um espaço de tristeza no balcão
Entre o «adeus» e o final «bem-haja!».

José do Carmo Francisco    

(Fotografia de Autor Desconhecido)

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Poema periférico para António Rego



Poema periférico para António Rego

Um homem subia aos telhados para falar
Não havia megafone, Internet ou telemóvel
Nem é correcto chamar telhados aos terraços.
No fundo é tudo uma questão de contexto
Com quando se escreve que uma homem rico
Possui muitos rebanhos, criados e mulheres.
A Bíblia é assim mas podia ser bem outra coisa
Um livro aberto a tão dispersas interpretações
Sempre novo e sempre antigo ao mesmo tempo.
O leitor de CDs do automóvel todas as manhãs
Continua a tocar o Vinde Espírito Santo Criador
Na pressa da cidade onde a febre tudo aquece.   
Um terraço não é um telhado, é só parecido
É só quase a mesma coisa sem o ser de facto
Saiu dos telhados e está hoje mais nos livros.
Porque oração e poema são coisas iguais
Maneiras de juntar de novo nas palavras
Tudo aquilo que a morte devagar separou.

José do Carmo Francisco    

(Foto de autor desconhecido)