sexta-feira, 29 de junho de 2018

Poema periférico para o Bom Retiro



Poema periférico para o Bom Retiro

O Bairro começava nos prédios da Confidente
E ia até ao fresco da Fonte de Santa Sofia
Para acabar ao lado do Colégio Sousa Martins.
No Jorge os homens jogavam ao chinquilho
Nas tardes dos sábados sem horas a contar
E as mulheres falavam na falta das azeitonas.
O homem GazCidla usava a caixa de fósforos
Para ter a certeza de que o gás não fugia
E sempre na casa com crianças ali ao lado.
Uma mulher chamou-nos gente ambulante
Mal sabendo ela a pobre o que estava a dizer
Porque a gente ambulante eram os ciganos.
Claro que já não eram ciganos como os outros
Mas o que a mulher dizia com rancor para nós
Era comos os cães do gado frente à caravana.
Ciganos a vida inteira a trabalhar para os outros
Nas hortas, nas eiras, nas vinhas, nos olivais
E a tristeza nos olhos sem idade e sem destino.

José do Carmo Francisco       

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Poema periférico para Álvaro Pato



Poema periférico para Álvaro Pato

O poema passa quatro vezes por dia
À porta do lagar de azeite do teu avô
Entre o Bom Retiro e a Escola Técnica.
Tal como tu o poema não pode ouvir
As crianças a chorar na sala ao lado
Com as torturas das mães a confessar.
As cartilagens do ouvido estão quebradas
Golpes de tesoura repetidos e certeiros
Por um pide mau que sabia do seu ofício.
Eu não sou ninguém, fui delegado sindical
Vinte e quatro anos seguidos desde 1972
Por isso tenho hoje uma reforma pequena.
Mas dava um ano de reforma e vida a quem
Me dissesse onde os sapatos de Carlos Pato
Na arca guardados junto à cama da avó.
Nós continuamos a ser da mesma turma
Ninguém nos tira dessa fotografia anual  
A preto e branco como é afinal a nossa vida.

José do Carmo Francisco   

(Fotografia de autor desconhecido)

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Poema periférico para Raúl da Costa



Poema periférico para Raúl da Costa

É um piano e o som parte para o céu azul
Voa sobre o mar e sobre a linha da terra
Sobre o tempo e sobre o espaço deste dia.
Ao contrário do que dizem ter inspirado Liszt
O que vejo no Grande Auditório do C.C.B.
É o triunfo forte da vida no som do piano.
Há um lenço branco que recolhe o suor
De Raúl da Costa defrontando o piano
A regular o timbre e o volume pelos pedais.
A vida sobe deste teclado e destes martelos
E da caixa de harmonia deste piano de cauda
No efémero que apetece seja permanente.
Ao contrário do título geral dos Dias da Música
Este som procura tirar os pecados do mundo
Ao juntar de novo tudo o que a morte separou.
Saio apaziguado do Centro Cultural de Belém
Como Cesário Verde é preciso não morrer nunca
E eternamente buscar a perfeição das coisas.

José do Carmo Francisco  

(ilustração de Bosch)