Uma voz no centro do Mundo
As vozes de algumas
mulheres, tal como as montanhas, os rios e as planícies, também se integram
numa geografia determinada. Circula também dentro dessas vozes o ímpeto do
vento nas alturas, o murmúrio das águas dos rios e o silêncio sem fim das
planícies.
O mundo de Cristina nasce
todas as manhãs na força do rigor inicial dessa voz antiga que se solta dos
cadeados da noite e começa a percorrer as encostas do dia.
Depois, no acumular das
horas envolvidas em monotonia, Cristina vai organizando a sua gramática de
afectos. Conforme a temperatura da resposta, logo se apercebe a origem provável
da pergunta telefonada. Na rua em frente, a janela de Cristina desvenda um dos
filmes mudos mais frequentes na cidade de Lisboa: o reboque da Polícia
Municipal vai recolhendo um a um os automóveis estacionados fora das linhas
brancas desenhadas na pedra negra da calçada. Antes tinham passado pela rua
raparigas de farda verde despejando papéis brancos nas escovas de borracha do
vidro da frente dos automóveis.
Aos poucos, de modo
vagaroso mas firme, a voz de Cristina instala a sua ordem no centro do Mundo.
Respira na velocidade por si utilizada no discurso com que ordena as entradas e
as saídas de informações em circulação, no seu tempo e no seu espaço. Entre
vida e morte, luz e escuridão, alegria e desolação, ruído e silêncio, amor e
ódio, a voz de Cristina está no centro do Mundo. Centenas de notícias, de
recados, de pedidos, de avisos e de recomendações circulam pela força da sua voz.
Uma voz sempre capaz de incorporar no seu desenho sonoro o ímpeto do vento das
alturas, o ruído das águas dos rios e o silêncio sem fim das planícies.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Emile Chambon)