terça-feira, 22 de outubro de 2013

Lamentação da mondadeira de arroz


Lamentação da mondadeira de arroz

Ontem fui à criminosa
Não há nada que se esconda
Maioral de voz raivosa
Mandou-me para a monda.
Vou passar o dia inteiro
Com os pés na água fria
Chegam as febres primeiro
Logo se afasta a alegria.
No pátio que é nosso mundo
Nunca chega a Primavera
Há um silêncio profundo
Todos ficamos à espera.
Os filhos, noras e família
A mulher que vive ao lado
São para ele a mobília
Do querer descontrolado.
Onde ninguém tem vontade
Própria, nascida em raiz
Nem sonho de liberdade
Fora do que o maioral diz.
Na Senhora de Alcamé
Procissão, bênção do gado
Todo o mistério da fé
Continua indecifrado.
Teimosia milenar
Resiste num tempo lento
Aquilo que vou cantar
É levado pelo vento.   

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de Autor Desconhecido)   

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Balada nocturna para Eduardina


Balada nocturna para Eduardina

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Na Rua dos Navegantes
Como na Horta, cidade
São as coisas importantes
Que criam maior saudade

Entre igrejas e conventos
Entre ermidas e mercados
Ficam no pó dos momentos
Os teus passos registados

Nas janelas dos solares
Na Ribeira da Conceição
Nos mais diversos lugares
Angústias em construção

Viola-da-terra, menina
Mas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Das Angústias, freguesia
Pode nascer um compasso
Com palavras de alegria
É esta canção que faço

Jardim Florêncio Terra
Num coreto silenciado
Uma voz em pé de guerra
Procura por todo o lado

Qual é o exacto lugar
Onde fica a sua canção
Será na Rua do Mar
Ou na Rua de S. João

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção                    

José do Carmo Francisco

(O óleo é de José Malhoa)
         

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Balada da Travessa da Queimada


Balada da Travessa da Queimada

Na memória inventada
à esquina da minha infância
A Travessa da Queimada
ficava a grande distância
Nos pavilhões e nas pistas~
nos estádios e piscinas
Nas crónicas e entrevistas
nas notícias pequeninas
Sonhava com os granéis
hoje é só computador
Não há chumbo nem papéis
num écran feito de cor
Mundial  sessenta e seis
 vivido linha por linha
E os magriços foram reis
bem ao lado da rainha
Estava na tropa e sabia
o peso da ditadura
Nas páginas que então lia
com o sinal da censura
E veio a libertação
maior a responsabilidade
Liberdade de expressão
é expressão da Liberdade
Nas etapas da alegria
 um gostinho de esperança
Carlos Miranda escrevia
a história da Volta à França
Eusébio e Agostinho
Lopes e Rosa a correr
No lugar do coitadinho
nascia o verbo vencer
Setenta e nove Outubro
passei para o outro lado
É então que me descubro
com um texto publicado
Nas colunas da amizade
 Vítor Santos e Pinhão
Abriram a claridade
 onde havia escuridão
No jornal de quinta-feira
um poema foi caminho
Poesia verdadeira
não se fecha no cantinho
O que o poema queria
era dar duas metades
Do futuro e da alegria
 do passado e das saudades
Não se vê o fim da rua
nesta longa caminhada
Porque A Bola continua
na Travessa da Queimada   

José do Carmo Francisco  

(Ilustração de Autor Desconhecido)