Os
pastores da cidade
Não vou dissertar sobre o
«pastor do ser» que todo o poeta digno desse nome, afinal é. Falo do outro
pastor, o pastor da cidade, o que se levanta cedo ou se deita tarde para
acompanhar o seu cão no passeio à volta do quarteirão. Vivi no campo, vivo na
cidade. Conheço bem o que são os cães nas quintas, nas casas, nas aldeias, nos
casais. Tive um cão (o Fadista) que nunca vi entrar na porta da cozinha. Vivia
no quintal, dominava a serventia entre a vinha e o pomar. Vivia no seu círculo
mas não atropelava o nosso – privado, doméstico e abrigado. Hoje atravesso a
cidade e vejo outro tipo de cão. Há o ácido da urina nos pneus, há a porcaria
pelos passeios, há anúncios na TV, comida especial, xarope contra as lombrigas,
vitaminas, coleiras. Todos os sábados de manhã eu encontro esses pastores da
cidade, ternos e pacientes, na condução dos seus cães. Todos os sábados de
manhã (vivo perto da Misericórdia de Lisboa) eu encontro um grupo de crianças
abandonadas conduzidas pela terna, paciente, atenta e dedicada monitora para o
seu passeio matinal. Nada nem ninguém pode substituir as relações verdadeiras.
Ternura em segunda mão, amor sucedâneo e sem horizonte humano, nada disso
serve. Por essa razão não sou capaz de compreender todos os sábados como não
foram coincidentes os caminhos desses pastores da cidade com os caminhos dessas
crianças abandonadas. Porque há muita criança a precisar de ternura, de atenção
e de um espaço de carinho num lugar sem sobressaltos nem angústias diárias.
Afinal, pensando melhor, os cães podem esperar. As crianças já esperaram
demasiado tempo e o seu olhar começa a estar cristalizado nas grandes olheiras,
negras e fundas, nascidas num tempo assim, tão hostil.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de autor desconhecido)
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