quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Balada da casa da costura


Balada da casa da costura

Foi na casa da costura
Entre agulhas e dedais
Que nasceu a tessitura
Do amor de nunca mais.
Foi no silêncio dos dias
Sempre maiores no Verão
Que sonhei as alegrias
Escondidas num alçapão.
Foi na casa da costura
Em maratonas tamanhas
Num lugar da Estremadura
Nasciam passa-montanhas.
Entre a ternura e a lã
Noite fora num lugar
Até chegar a manhã
Num café a fumegar.
Foi na luz daquela eira
A joeirar contra a brisa
Que a vida verdadeira
Surgia quando é precisa.
E é no sangue pisado
Que nasce cada balada
Leva a voz a todo o lado
Como se não fosse nada.

José do Carmo Francisco

(O óleo é de Jankel Adler)    

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Notícia


Notícia
(a António Valdemar)

Um poema é sempre também uma notícia
Uma crónica, foto-legenda ou reportagem
Às vezes é só um simples caso de polícia
Outras, crítica de filme ou nota de viagem

Tal como o jornal pode ter sentidos vários
E até o não- sentido do seu total abandono
Seja a embrulhar lancheiras de operários
Seja não ser lido de tão derrotado pelo sono

Um poema é sempre também uma notícia
Questão de dizer muito em poucas linhas
É também mais um problema de perícia
De saber juntar as palavras mais sozinhas

Palavras que nem sempre estão à vista
Neste dicionário que se chama emoção
No poema circula também um jornalista
Meio perdido entre urgência e lentidão

José do Carmo Francisco

(O óleo é de Heitor Chichorro)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater


Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater

(para Cláudia Cardinale em Aconteceu no Oeste)

Não tive tempo para nada.
A trompete ajudou com as suas notas sincopadas a simular os meus soluços que ninguém ouviu. Nunca tinha visto um banquete de morte. Lá longe, em New Orleans, as mesas servem sempre para as refeições e para a alegria dos encontros. Aqui de nada serviu a recomendação de Brett à filha para cortar as fatias do pão muito maiores que o habitual.
Não tive tempo para nada.
Nem para as lágrimas que são a água salgada da revolta perante a injustiça da morte. Nem para perceber quem mandou matar uma família inteira. Nem para perceber porquê. Ainda era cedo. Sei agora a diferença entre a água doce do meu poço e o sal da água azul do Oceano Pacifico que está num quadro da parede da carruagem de luxo de Mr. Morton.
Não tive tempo para nada.
Afinal ainda é cedo para saber de um homem, moreno e triste, capaz de, como quem cumpre uma sentença, matar vários assassinos depois de tocar uma melodia vagarosa numa harmónica velha, presa ao pescoço por uma corda muito mais pequena e estreita do que a outra, a utilizada para enforcar o seu irmão mais velho numa infância já distante.
Não tive tempo para nada.
Aos poucos percebi como é possível construir um sonho em miniatura. A madeira está paga, os barris cheios de pregos estão à espera. É só contar os passos e marcar o perímetro das primeiras casas de Sweetwater. A Estação e a Igreja, o Banco e o Hotel, as primeiras lojas. O sonho de Brett McBain não pode ficar adiado. A roldana do poço espera por mim. Os primeiros operários do caminho-de-ferro acabam de chegar e estão mortos de sede.

José do Carmo Francisco    
        
(Fotografia de autor desconhecido)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Perfil



Perfil

Há uma pequena luz que te recorta
Desenha o teu perfil no meio da rua
Como num filme entras numa porta
Deixando uma saudade que é só tua

Perfume, sabedoria ou só presença
É tudo o que só tu tens e te pertence
Se o som da tua voz faz a diferença
A força do teu olhar tudo convence

Além do peso da terra que tu trazes
Eu tenho as canções por ti cantadas
No meio da batalha fazes as pazes
Trazendo flores em vez de espadas

No meu caminho de todos os dias
Só paro nos semáforos da cidade
Quero ouvir de novo o que dizias
Na tua voz há sempre uma verdade

José do Carmo Francisco

(A fotografia é de Ferdinando Scianna)