Olhar o monte
(Viagem)
Vejo o monte quando olho para ti.
Tu não sabes mas o teu olhar é uma porta aberta, um convite,
uma sugestão de caminho. Olho-te na cidade e penso logo no campo, penso logo na
brancura das casas, no azul das barras, no castanho das telhas.
Cheguei aqui cansado, vinha a transpirar, os pés pesavam
toneladas e, morto de sede, só descansei quando me deste um copo de água tirada
de uma bilha no louceiro. A única música que aqui chega é a do vento, capaz de
secar a roupa estendida e as tuas lágrimas.
Vejo o monte quando olho para ti.
Vejo nos teus passos o prenúncio do movimento. És tu que
seguras o alguidar da roupa que vais estender entre a última casa e a primeira
árvore. Tal como foste tu a sacudir o sono e a trazer à vida do monte a sua
velocidade.
Há uma ordem, uma perfeita sintonia de aromas que mistura de
modo sábio o odor das flores silvestres aqui à volta e o lento cozinhado por ti
decidido no espaço da cozinha onde muitas vezes preparar a refeição é mais do
que arte; é uma ciência.
Vejo o monte quando olho para ti.
Habito o espaço sentimental desta imagem por ti povoada. É
um dia luminoso, o monte repousa e apenas o esvoaçar da roupa que tu estendeste
lembra que vive aqui alguém. As tarefas quotidianas ocupam os seus locatários.
Uma humidade difícil de medir percorre e liga a ternura dos teus olhos à
respiração da terra.
Vejo o monte quando olho para ti.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Guy Troghton)
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