domingo, 23 de dezembro de 2018

Os cães da noite na Carrapateira



Os cães da noite na Carrapateira

A refeição mais excelente
Perde o tom de encantar
Quando surge de repente
Uma matilha a ladrar.
Sem dono e sem coleira
 Entre as mesas da frente
Os cães da Carrapateira
Incomodam toda a gente.
E a rapariga loura a cantar
Canção de voz estrangeira
Faz um contraste do mar
Com a paz da Carrapateira.
Onde a luz do fim do dia
Se desfaz ali no fundo
Naquilo que eu perseguia
Procurando a paz do Mundo.
Que se encontra noutra mesa
Dum diverso restaurante
Onde já não é surpresa
Um cão ser mais importante.
E ainda falam de Turismo
Casa às costas, pé descalço
Nem Parque de Campismo
Tudo isto me soa a falso.

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de autor desconhecido)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O Cristo de madeira da Rua Anchieta



O Cristo de madeira da Rua Anchieta

Uma coroa mas de espinhos
Faz sangue no incauto rosto
Passam os homens sozinhos
Do sobressalto ao desgosto.

No Natal que se aproxima
Tão veloz como uma luz
Entre a lágrima e a rima
Surge o busto de Jesus.

Num bocado de madeira
Trabalho de artesanato
Uma peça de oliveira
Que ultrapassa o retrato.

Porque extensão e volume
Dum rosto hoje distante
Lembram traição e ciúme
Do suposto bem-pensante.

Sacerdote incontestado
Entre Herodes e Pilatos
O povo tinha gritado
Por Barrabás e seus actos.


Na varanda e na bacia
Quem lava as mãos a chorar
Sabe que no fim do dia
A água não chega ao mar.

Travada pela secura
Do deserto da indiferença
Escondeu-se numa escritura
Sem sequer pedir licença.

José do Carmo Francisco

(fotografia de autor desconhecido)


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A água de 1956



A água de 1956

Na manhã de Abril
quando não me disseram
(nem poderiam ter dito)
«A tua mãe morreu»
Porque (todos o sabemos)
as mães de facto não morrem
apenas o seu corpo se esconde
nos degraus da terra e do silêncio.
Nessa manhã de Abril
senti que toda a terra secou
não toda a terra mas apenas
a que ficou entre os meus pés
e a terra propriamente dita.
Lembrei-me então de como
essa secura só poderia ser
de facto resolvida pela água
uma certa água de 1956
trazida em cântaros vermelhos
do Poço do Povo para os louceiros
com dois intervalos para o bojo.
Havia um pano branco a tapar o sol
que entrava por uma telha de vidro.
Havia uns papéis com motivos berrantes
a servirem de naperon nas prateleiras.
Havia o ar, o peso do ar de 1956
e só a memória desse ar me segurou.
Havia uma rodilha feita de um lenço azul
comprado na Feira Grande de Rio Maior.
Havia (enfim) a água de 1956
aquela que hoje me poderia matar a sede
ou resolver de vez a secura da terra
debaixo dos meus pés suspensos
como naquela manhã de Abril.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia do arquivo pessoal de JCF)

domingo, 2 de dezembro de 2018

Bilhete de Identidade



Bilhete de Identidade

Descubro aquilo que sou
Num caminho onde meu avô
Conduzia um carro de bois
Parava sempre que me via
Semeava raízes de alegria
É isso que nos une aos dois.
Ele utilizava o aguilhão
Quando precisava dum travão
Para o seu carro tão antigo
Hoje eu utilizo um pedal
No fundo a ideia é igual
Parar quando vejo um amigo.
Aquilo que a minha avó fazia
Dar o «pão por Deus» com alegria
A todas as crianças do povoado
Faz hoje minha mulher se oferece
Brinquedos a quem os não merece
E não sabe pronunciar um obrigado.
Aqui dei os primeiros passos
Embora conheça outros espaços
E já tenha viajado pelo Mundo
Mas é a força destas raízes
Que nos ajuda a ser felizes
No meio do silêncio profundo.
O meu avô o meu pai e o meu tio
Fixaram entre a estrada e o rio
Um espaço para eu ser e afirmar
Toda a força da voz e do caminho
Que mesmo feito devagarinho
Tem a razão de ser neste lugar.
É a força das raízes consolidadas
Na terra das esperanças proclamadas
Em nome de uma amanhã mais seguro
Não se trata de um segredo guardado
Mas a verdade é que está no passado
Toda a razão de ser do meu futuro.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Valter Vinagre)