segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sobre um Tema de Vitorino Nemésio



Sobre um tema de Vitorino Nemésio

Viver nas ilhas pequenas
É comprar paz com desconto      (Vitorino Nemésio)

Viver nas ilhas pequenas
É ter mais tempo nos dias
Entre manhãs tão serenas
E as noites longas e frias

O dia tem horas cheias
Passam os vários vapores
E na sombra das baleias
Há vozes de trancadores

O vinho das cepas velhas
Desce com a neve do Pico
Desde a porta até às telhas
É nesta adega que eu fico

No sossego das lagoas
Na distância das fajãs
Perdi a voz das pessoas
Na gramática das manhãs

Viver nas ilhas pequenas
É comprar paz com desconto
Ter numa factura apenas
A vida ponto por ponto

José do Carmo Francisco

(Fotografia de António Sena)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Até Esse Momento



Até Esse Momento


Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó

Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas

Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas

Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece

Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas

Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz

Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono

Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo

Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto


José do Carmo Francisco

(Óleo de Shang Ding)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

As mãos do meu avô José Almeida



As mãos de meu avô José Almeida

Caiu o telhado. Não sei se imaginas
Como tudo agora é sombrio e triste
A casa onde vivemos está em ruínas
O quarto onde se nascia já não existe

As pedras e os barrotes são só entulho
Ficou tudo acumulado no rés-do-chão
Há um silêncio onde antes era barulho
Que era um sinal de vida em profusão

Fosse na casa, no quintal, no palheiro
Onde também se fazia o nosso lagar
As tuas mãos à luz do velho candeeiro
Trabalhavam na noite fora sem parar

E aos domingos a trompete tão diferente
Faiscava entre a luz do sol na procissão
As tuas mãos, o chumbo e a água quente
Faziam na trompete um som de perfeição

José do Carmo Francisco  

(Foto de Luís Milheiro)     

domingo, 25 de novembro de 2012

Balada da Calçada do Combro



Balada da Calçada do Combro (ou o «28» de Oleg Basyuk)

A Rua de todos os dias
Onde eu ia quatro vezes
E as noites mais sombrias
Demoravam como meses

Polícia à porta da Escola
A proteger as meninas
O amor era uma esmola
Pedida noutras esquinas

Poço dos Negros abaixo
Em cima era o Calhariz
Na memória que eu acho
Tudo é escuro e infeliz

Havia a guerra e o medo
Estava perto a inspecção
Um poema era segredo
Na Escola Veiga Beirão

Ao sábado até à uma
O trabalho continua
A bica de alta espuma
Espera por mim na rua

Manhã de segunda-feira
Vinte e oito na pendura
Uma vida verdadeira
Não se vive em ditadura

Nos cafés ao fim do dia
Os boatos são notícias
Falar é uma teimosia
À paisana são polícias

«Suplemento literário»
Quinta-feira nos jornais
Via o tempo ao contrário
Onde os sonhos eram reais

Passam já quarenta anos
Sobre mim sobre a calçada
Fora estes mitos urbanos
Parece que não houve nada

Excepto talvez a ternura
Que se gastou em excesso
A calçada é uma gravura
Mas virada do avesso

Onde até eu sou presente
Na multidão disfarçado
Estou no lugar da frente
Assim vou a todo o lado

Numa porta de Livraria
Vi Bocage em imagem
Na paragem da alegria
Acabou esta viagem

José do Carmo Francisco

(Óleo de Francisco Xicofran)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento


A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento

Não vejo nesta Sé a caixa com os ossos do meu bispo
Nem hoje nem em Agosto de 1961 quando aqui rezei
Pelos exames de admissão ao Liceu e Escola Técnica

Estranhei os sinos da Sé e os galos madrugadores
Mais que o colchão de palha tão igual ao do quartel
Que iria ter anos mais tarde nas Caldas da Rainha

Comecemos: nasci numa terra de escritores esquecidos
José António da Silva Rebelo não é só bispo de Bragança
Também é autor dum livro hoje na Biblioteca da Ajuda

Lembranças sobre a felicidade de Portugal foi escrito
No seu tempo de administrador da Casa Pia de Lisboa
E foi sem surpresa dedicado a D. Miguel no ano de 1828

Faustino do Rego em 1525 escreve sobre Ordem de Cister
E Manuel de Moraes sobre Francisco de Assis em 1735
Perdendo-se de seguida nas emboscadas do esquecimento

Na sacristia de Santa Catarina existe um retrato do bispo
Repousam os seus ossos na capela-mór de Almagreira
Onde terá morrido em 1846 à beira de completar 67 anos

Tudo começou no castelo de Leiria, no rei Afonso IV
Por isso a torre da Sé assenta numa sua velha porta
De onde se faz ouvir o som feliz dos seus oito sinos
  
Foi desviado o rio que passava dentro do claustro da Sé
Onde os cónegos pescavam os peixes do seu escabeche
E hoje há descargas da ganância das pecuárias sinistras

O pau-santo da sacristia veio de Belém do Pará, Brasil
Nos barcos vagarosos que levavam cantores de ópera
Músicos e guarda-roupa dos romances ainda por cantar

Há hoje a força do silêncio do Grande Órgão de 1997
Para dar mais realce aos painéis de Simão Rodrigues
E à sua Assunção de Nossa Senhora, nossa padroeira

E minha padroeira mesmo sem ter sido baptizado
Na capela do baptistério da nave lateral esquerda
Nem ter lavado as galhetas no fontanário da sacristia

Estas naves e capela são meu lugar de oração teimosa
Que a morte dos nossos parentes sabe sempre a injustiça
Ou antecipado ajuste de contas entre pecado e perdão                    

Em 1961 no Verão já se falava aqui nas três guerras
E grupos de mães procuravam favores de sargentos
Numas oficinas de Alverca, lá mais perto de Lisboa

Passei nos dois exames mas já estava no Comércio
Ouvi muitas vezes murmurar como quem censura
Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!

A luz de Deus entra nos vitrais, forte, justa, solene
Hoje como já em 1570 as naves gritam às capelas
O fervor da futura sagração quatro anos mais tarde

Entre as pedras e os sinais há um tempo que resiste
Forma-se uma procissão solene à porta da sacristia
O meu bispo vence as emboscadas do esquecimento

José do Carmo Francisco (31 Jan. 2011)            

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Pão, o Vinho, a Carne



O Pão, o Vinho, a Carne

Eu também comi desse pão e bebi desse vinho
Entre o sol e o pó na luz da tarde dum arraial
Eu era o rapazinho que transportava a carne
Na travessa com um ramo de louro por cima
Era eu que gritava Quem dá mais ó debotes!
Mesmo sem saber que devia dizer ó devotos!
Sem saber nada e não saber nada era ser feliz.
Era eu que tropeçava nas pedras soltas da rua
Debaixo do pálio ia com a naveta do incenso
Com o turíbulo a deixar no ar o imenso doce
Passando ao lado dos mais humildes currais
Onde os sons da filarmónica faziam responder
Todas as vozes de todos os animais da terra
Cansados dos seus trabalhos de todos os dias.
No fim da procissão logo começava o almoço
No fim do almoço tinha o coreto e a quermesse
Um copo de vinho amolecia as cavacas duras
O sol derretia todo o gelo na tina das gasosas
Enquanto eu derretia todos os tostões em rifas
E os músicos chamavam «marcha tripas a ferver»
À marcha militar «Stars and stripes for ever».
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
No pão, no vinho e na carne vendida num leilão
Havia em tudo a humidade das lágrimas de Deus
Porque só às crianças cabia o preço do resgate
Dum Mundo cada vez mais longe da Sua Luz
Onde as primaveras já não eram uma estação
Mas um cenário de plástico e de papelão cinzento.
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
Mas saber não era para mim o mais importante
Porque naquele tempo vivia a festa por dentro
Mas hoje já não há nenhum lugar para mim
Nem na procissão nem nas rifas da quermesse
Nem na mesa do almoço onde não está ninguém
Nem no coreto de onde todos os músicos fugiram.
O poema é uma candeia acesa no meio da noite
Quer ser uma oração a juntar o tempo que ficou
No lado de lá do vazio, da noite e da infância
Lá onde não há pontes a ligarem duas margens
Lá onde o poeta ajoelha num altar de sombras
Para rezar de novo nas mais longas ladainhas
Um poema tão triste, tão teimoso e tão tardio.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Caravagio)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Balada para Salgueiro Maia em S. Torcato



Balada para Salgueiro Maia em S. Torcato

Para acabar com o luto
De noivas, avós e mães
É que a noite deu fruto
Nas armas dos capitães.
Nas portas da madrugada
De Santarém nos limites
Foi Lisboa atravessada
Pelo grupo de Chaimites.
Passou no Terreiro do Paço
Ali bem defronte do rio
A caminho doutro espaço
Deu a volta no Rossio.
Para cercar com disparos
O Governo de surpresa
O quartel com fiéis raros
Tinha ali a sua defesa.
Porque foi em S. Torcato
Escola Primária pequena
Que desenhou o formato
De tanta força serena.
Vendo o pai ferroviário
Com a lancheira já fria
Quis o país ao contrário
Da guerra veio alegria.
Hoje é só mercadorias
Venda Novas ao Setil
Não se repetem os dias
Na estação que era febril.
Veio um grupo de rapazes
A governar a Nação
São coladores de cartazes
A cobrar a comissão.
Nada sabem do passado
Nem da guerra africana
Cada momento gravado
Cada dia uma semana.
Os votos de dois milhões
São apenas maioria
Porque ganhar eleições
Não chega a democracia.

José do Carmo Francisco 

(Foto de Alfredo Cunha)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Alexei Bueno nas Escadinhas do Duque



Alexei Bueno nas Escadinhas do Duque

Tinha que ser escritor este bandeirante
Nome herói de romance em homenagem
Assim a Rússia já não fica tão distante
Numa vida que é também uma viagem

Nas Escadinhas do Duque é rei à mesa
Dá lições de poesia em breve seminário
Entre cerveja e amendoim nasce a beleza
Da Poesia que o Mundo vê ao contrário

Somos poucos aqui um grupo acantonado
Na mesa posta por D. Rosa na sexta-feira
Viajamos num bacalhau bem temperado
Pelo azeite tão puro e leve duma oliveira

No Camões a mulher feia vende cocada
Desesperam por um visto os brasileiros
Que pena a vida não poder ficar parada
Aqui onde os poemas nascem inteiros

José do Carmo Francisco   

(aguarela de Miguel Levy)     

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Viagem de Pedro


A Viagem de Pedro

O meu amor é uma viagem que não termina
Entre Coimbra e Alcobaça, dois mosteiros
É uma história que cabe inteira e pequenina
Dentro duns versos curtos mas verdadeiros   

Adormeci numa das vilas do Alto Alentejo
Olhando toda a lonjura quente da planície
Tão infinita como é a força do meu desejo
Mas sem volume, sem peso nem superfície

O meu amor é uma viagem que não termina
Entre a Pederneira e este porto da Atouguia
Inês traz-me um mapa na sua voz de menina
E nas mãos empurra as sete ondas da alegria

Fixei todo o meu romance entre água e terra
Entretanto o oceano recuou, ficou para trás
O meu barco apodreceu onde hoje é a serra
Mas o meu amor não encontrou ainda a paz

José do Carmo Francisco 

(foto de Luís Milheiro)  

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A Trança de Conceição



A Trança de Conceição

Uns dedos a desfazerem a tua trança
Memórias de mãos distantes e antigas
Nas janelas da tua casa de criança
Chega o som de orações e de cantigas

São rezas, são salmos, são ladaínhas
De grupos a subir do vale ao monte
Unidos nas palavras mais sozinhas
E na sede mais ansiosa de uma fonte

Uns dedos a desfazerem a tua trança
São o reflexo da ternura da tua mãe
Para transformar dor em esperança
Sem esperar pela ajuda de ninguém

A tua trança é o relógio e o calendário
Dos dias e dos anos da minha vida
Quem me dera virar tudo ao contrário
A fazer do olhar uma eterna despedida

José do Carmo Francisco   

(óleo de Laine Kainaize)       

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A Varanda das Meninas



A varanda das meninas

No beijo que me deste em despedida
Ficou parte do teu tempo concentrado
Uma parte da tua alma e da tua vida
Trouxe ao presente a luz do passado

Quando havia uma varanda de meninas
A olhar para os mascarados no passeio
Depois a atirar centenas de serpentinas
Que ligavam a casa às arvores do meio

Esse mesmo meio onde já só há asfalto
E os fumos dum trânsito feio e doentio
Onde uma sirene me põe em sobressalto
E onde chega o nevoeiro que vem do rio

Este encontro foi breve porque a rotina
Te chamava para as tarefas do dia-a-dia
Foi no beijo que voltaste a ser menina
E a Morais Soares foi a Rua da Alegria

José do Carmo Francisco   

(Óleo é de Marta Shmatava)          

domingo, 2 de setembro de 2012

Balada do Cais das Colunas



Balada do Cais das Colunas

Cais das Colunas, janela
Do Tejo, do Mar da Palha
Registas um barco à vela
Que noite e dia trabalha

Bote, batel ou canoa
Bateira, falua, enviada
Traz o peixe de Lisboa
No preço de quase nada

Varino, muleta, fragata
Cangueiro, proa redonda
Catraio onde a serenata
Não tem voz que responda

E a palha que deu nome
Ao mapa deste estuário
Pode ser sinal de fome
Num lugar ao contrário

Da Chamusca, alagados
Os campos sem animais
Sobe a água nos valados
Há notícias nos jornais

Mistério, o Tejo amplia
Em homens e cacilheiros
E na faina do dia a dia
Os sonhos são verdadeiros

E povoam todo o luar
Da noite do que persiste
As horas de trabalhar
Não dão para ser triste

Inscrevem-se na paisagem
Nos barcos, mercadoria
Ligam uma, outra margem
Na mais teimosa alegria

José do Carmo Francisco

(Foto de Luís Milheiro)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A Factura de Conceição


A Factura de Conceição

Quando nasceste caiu todo o peso da Terra
Sobre os ombros já tão cansados da tua mãe
Venceu a vida sobre a morte em pé de guerra
Que tinha levado o teu pai para outro Além

Não pudeste sentir a força dos seus braços
Quando regressava a casa ao fim dos dias
Nem ele sorriu dos teus primeiros passos
Ou emendou as tímidas palavras que dizias

Agora tu devolves à tua mãe essa ternura
De há cinquenta anos mas em duplicado
É quase como quem paga hoje uma factura
Cujo vencimento nunca foi ultrapassado

Uma factura feita das lágrimas e dos sinais
Uma soma de muitos cuidados e de paixões
Corres por ela nos corredores dos Hospitais
Se pudesses eras tu que fazias as transfusões

José do Carmo Francisco           

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


(a Carlos Marques Querido)


Nasci em 1779 em Santa Catarina
Terra de gente muito dada a alcunhas
Minha mãe foi chamada a Abadessa
Gostava de andar de capas pretas
E tinha um porte altivo ao caminhar
Vinha gente de longe para me ouvir
Preguei sermões desde o ano de 1804
Na festa da padroeira Santa Catarina
Na Real Casa Pia de Lisboa em 1828
Na igreja dos Jerónimos ao Domingo
Durante sete anos andei sempre a fugir
Das tropas do general Jorge de Avillez
Que entraram em Bragança em 1834
Expulsaram a guarnição miguelista
E aclamaram de seguida D. Maria II
Avó Isabel Maria e avô Manuel Fialho
Procuraram esconder-me na Cumeira
Um amigo leal pôs quatro almofadas
Nas ferraduras dos cavalos dessa noite
Sem chamar a atenção de quem dormia
Pena eu ter vivido um tempo demarcado
Pedro no Mindelo, Miguel no Alentejo
O ódio enchia os caminhos e as valetas
Eu mesmo me escondi nuns matagais
Onde uma criança me viu desfalecido
Em Almagreira onde morri anos depois
Meu nome ficou em pedra na capela-mór
Destino singular de quem nasceu no dia
Da primeira pedra da Basílica da Estrela
E na vida escreveu palavras como pedras
Por debaixo do meu retrato na sacristia
Um bisneto do sacristão do Padre Agnelo
Lava galhetas na água da torneira prateada
Anos depois assinará um poema obscuro
A ligar de novo o que a morte separou.

José do Carmo Francisco

sábado, 16 de junho de 2012

o corvo de Papillons Walk



Cai aqui uma chuva macia e certa
Na estrada do domingo de manhã.
Teimoso e obstinado, o corvo corre
Nos intervalos dos poucos automóveis.
Será o resto de um pão preso ao asfalto
Deixado cair por uma criança indolente.
Mal surge o som e a imagem na curva
De Morden Road, o corvo salta da rua.
Nada sabemos deste corvo capaz de viver
Dentro do tempo de duas guerras mundiais.
Em 1914 terá fugido ali para Greenwich
Matando a fome na cantina da Academia.
Em 1939 escondeu-se no Rio Quaggy
Onde não chegavam as bombas alemãs.
O corvo de Papillons Walk salta
Por cada automóvel que aqui passa.
Nada sabe da chuva desta manhã
Nem dos cânticos da igreja ao lado.
Sem idade nem memória, só futuro
Há nele uma pujante razão de ser.
Não se distrai com os esquilos
Que cruzam os jardins das moradias.
Não se concentra nas crianças da rua
Nas suas roupas, gritos e abóboras.
Não se envolve no trânsito da rua
E no som do guarda-lamas nas lombas.
Em Papillons Walk o corvo come
Um pão que não seca nem termina.

José do Carmo Francisco

terça-feira, 12 de junho de 2012

Um poema de Londres


As casas de Blackheath Park

São todas de madeira e de vidro
As casas de Blackheath Park
A outra metade é feita de tijolos
Tristes porque são todos iguais
Na sua tão repetida monotonia

À volta da avenida fica o arvoredo
Antigo como as casas dos guardas
Lembra um velho tempo de quintas
Com cavalos e carroças no mercado
Hoje só recordado aos domingos

Esquilos nos ramos, corvos na relva
De noite raposas fogem assustadas
Dos poucos táxis a circular na rua
Na escuridão fria da noite inglesa 
À hora dos comboios mais raros

Envolvido nas rotinas das escolas
Levo na mão o meu neto de manhã
E vou buscá-lo perto do meio-dia
Pego na pasta azul com o seu nome
E levo o saco da fruta que ele espera

Todos os dias trocam o livro da mala
São elefantes, borboletas e ovelhas
Entram na floresta que eu lhe conto
E tremem de medo dos monstros
Como eu tremo de medo da doença

São todas de madeira e de vidro
As casas de Blackheath Park
Frágeis perante a neve a chegar
Tal como eu frente ao pâncreas
Que de súbito há-de ficar cansado

Tudo é intenso e frágil nos dedos
Maneira de eu dizer adeus à vida
Todos os momentos são preciosos
Para que o meu neto me lembre
E não se esqueça de me recordar  

José do Carmo Francisco