sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Balada para Virgínia no Largo do Pelourinho


Balada para Virgínia no Largo do Pelourinho

Há quem chame auditoria
Há quem prefira inspecção
Quando chega o fim do dia
Só queremos ter o «Razão».
No Largo do Pelourinho
Coração em pé de guerra
Ninguém se sente sozinho
No centro da nossa terra.
Hoje não há vasilhame
Nem taras no Inventário
O Balanço é um exame
Tudo o resto é o contrário
E do Diário Analítico
Já ninguém ouve falar
Neste rio que é político
Vejo o caminho do mar.
Onde o sossego da areia
Aquece tudo o que é mais
Cobranças de Conta Alheia
São factos patrimoniais.
Jornalista antepassado
No Jornal Catarinense
Vai comigo a todo o lado
Tudo passa e tudo vence
No bloco de Juventino
Nas palavras cautelosas
Se desenha um desatino
Feito de espinhos e rosas.
Com  automóveis à beira
Da estrada aos Domingos
E pagavam à lavadeira
Para lavar o pó e os pingos. 

José do Carmo Francisco
  
(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Um vinho branco em Veneza


Um vinho branco em Veneza ( homenagem a Sílvio Castro)

A noite trouxe palavras na toalha da mesa
Eu vinha de Bolonha como enviado especial
A nossa festa tinha vinho branco em Veneza
No restaurante muito se falou em Portugal.
Havia Fernando Couto e Edmilson lesionado
Na alegria do encontro nem recordo a ementa
Foi em 98 e ainda o Euro não tinha chegado
Eu trouxe no comboio uma nuvem cinzenta.
Dizem que vinho é só um tempo engarrafado
Conheci gente em Veneza mas sem despedida
Hoje há uma pergunta que vem de todo o lado:
Que coisa é afinal esta tua e esta nossa vida?


José do Carmo Francisco     

domingo, 11 de dezembro de 2016

Pranto e Lamentação para Filipa em Maio


Pranto e Lamentação para Filipa em Maio

Eu oiço a voz calorosa do major Raúl Brandão
Na mesa mais distante do café da Faculdade
Sentada de costas vejo a princesa do mouchão
Que trouxe a luz do campo ao escuro da cidade.
Do que ficou das cheias formou-se um aluvião
Lodo, areia e matérias arrastadas nas correntes
A demora para processar esta nova situação
Leva milhares de anos vagarosos e pacientes.
Escreva sobre os Pobres lhe disseram numa casa
Num pátio de anarquistas numa noite de Lisboa
Filipa que estudava as palavras em fogo e brasa
Levou consigo a chave para decifrar uma pessoa.
Voltaremos todos nós a essa mesa mais distante
Do lado esquerdo da porta principal do edifício
Para saber o pormenor mais fino e importante
Da viagem iniciada ao esplendor do seu ofício.

José do Carmo Francisco   
            

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Retrato breve de Filipa em Vila Franca


Retrato breve de Filipa em Vila Franca

Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade
Passam alunos da Escola
Que ficam na fotografia
Todos usam camisola
A manhã está muito fria
Fecharam as tronqueiras
Já se sente uma emoção
As paixões verdadeiras
Não precisam explicação 
Entre gaibéus e avieiros
Passa a memória sentida
Do Tejo a encher esteiros
Com água que traz a vida
Os barcos cheios de areia
Chegam de manhã ao cais
Hoje o Gil Conde passeia
Nas águas do nunca mais
E no comboio que passa
Tão veloz para o Oriente
Há memória da barcaça
Com automóveis e gente
Ao lado fica um jardim
O ringue de patinagem
Os jogos não tinham fim
As palmas eram coragem
Olha de longe o Mouchão
Onde só olhar é preciso
E a terra vem dar razão
A quem busca o paraíso
Água, fogo, ar e terra
Conjugados num lugar
Coração em pé de guerra
Tem um poema de cantar
Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade

José do Carmo Francisco

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O teu nome


O teu nome.

O teu nome. Sim. Já era o teu nome.
Vindo do chão do tempo antigo, o teu nome cheirava a pétalas pisadas no adro de uma igreja em dia de festa numa aldeia imaginada, trazia no seu dorso o peso das grandes chuvas e o lume das longas tardes de sol entre as searas e as casas da planície.
Era o teu nome e eu não o conhecia.
Depois soltou-se, desligado da gravidade, como se fosse um pássaro ou uma canção, em ambos os casos com o destino óbvio de quem quer voar seja no espaço azul seja no coração de quem ouve cantar. Foi subindo como um anúncio luminoso, como um cartaz de cinema, como uma notícia.
Era o teu nome e eu não o percebia.
Por fim colou-se à luz dos meus dias, deu ao calendário um sinal de fulgor, fez do meu tempo um mar de referências e de memórias.
Era o teu nome e eu não o dizia.
Hoje é a chave da casa, o portão do jardim, o lugar onde me debruço para te esperar quando o fim do dia só faz sentido com o teu regresso.
Vem com ele, dentro dele, uma música suave, oboés e fagotes, trompas de harmonia e bombardinos, trompetes em surdina, clarinetes velozes, todos a dizerem que o teu nome, hoje como ontem, continua a cheirar a pétalas pisadas no adro da igreja em dia de festa numa aldeia imaginada, trazendo no seu dorso o peso das grandes chuvas e o lume das longas tardes de sol entre as searas e as casas na planície.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Thomas Edwin Mostyn)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Balada de quarta-feira para Fausto e Amigos


Balada de quarta-feira para Fausto e Amigos

«Madrugada dos trapeiros»
Levanta a voz na cabina
Até aos sons derradeiros
Estão onde não se imagina.
Nas paredes de cortiça
Com microfone fechado
Vive a relativa justiça
Que chega a todo o lado.
Num esplendor vegetal
Uma mesa de amizade
Encontros sem ritual
No bulício da cidade.
«Dormi no submarino» 
Sem sair desta mesa
Um conviva clandestino
Antes da flor japonesa.
Que se sentou lateral
Numa mesa incompleta
Lá for era um vendaval
Cá dentro ordem secreta.
E nas histórias cruzadas
Que cada um produzia
Era no meio das garfadas
E de novo uma alegria.
Recordamos morte e vida
De quem nos foi anterior
Somos uma ponte erguida
Entre as margens do amor.
Assim como uma poesia
A rádio é como a oração
Que junta de novo um dia
O que foi separação.
Na despedida a promessa
De voltar numa semana
Agenda do não se esqueça
Mesa sagrada e profana.

José do Carmo Francisco   
    
(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Balada para uma foto de 1973


Balada para uma foto de 1973

Na Alta Estremadura / Entre os livros e os jornais
Estou na casa da costura / Na colecção dos dedais.
Entre a neblina do rio / E a curva dum cemitério
Cada passo um desafio / Cada olhar um mistério.
E na Praia da Vieira / Fica um pé feito de espuma 
Que na hora derradeira / Há-de ser coisa nenhuma.
Na Rua dos Sapateiros / No rosto há duas maçãs
Nesses dias pioneiros / Todo o tempo é de manhãs.
No Rio Liz com moínhos / Fragatas no Rio Tejo
Não há momentos sozinhos / No desenho do desejo.
Há um tempo inalterado / No retrato deste dia
Procurava em todo o lado / Para encontrar alegria.
A luz não se apaga mais / Num tempo que não termina
Vai desenhando os sinais / No olhar da mulher-menina.

José do Carmo Francisco 

(fotografia de autor desconhecido)

sábado, 5 de novembro de 2016

Três poemas da periferia


Três poemas da periferia

Um

Entre o olhar e os óculos / Princípio activo do sorriso / Bem-haja! no final do balcão.
Se chove no negro do asfalto /O olhar vê o chão das oliveiras / E as pedras de passar da ribeira.
Lisboa fica a oito quilómetros / Mas não penso na distância / E trago a terra no olhar.

Dois

Três meninos no passeio / Dois passos atrás a mãe /E a sombra da menina sonhada.
Hoje o desporto traz suor / No ombro de quem correu / Até ao fim da luz do dia.
Calções e camisolas na máquina / Na praceta onde o sol não vai /Pendura as meias a secar.

Três

Vira o disco e toca o mesmo /Ana Moura, Zambujo, Mariza /Se fosse Quim Barreiros era igual.
Da cozinha vem o repetido som / Loucura de todos os dias / Nas tarefas invisíveis de viver.  
Afinal foi tudo das partilhas / Com a morte da sua mãe / Os irmãos deixaram de ser irmãos.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Monserrate, o muro


Monserrate, o muro

O som do mar alcança este muro
Que separa o arvoredo e a estrada
Aqui não há passado nem futuro
E a vida passa sem dar por nada.
O peso do silêncio está nos espaços
A envolver uma sombra e uma figura
Na estrada não se ouvem passos
E a espuma das ondas traz brancura.
Mundo animal, vegetal e mineral
São tempos fechados no portão
Fechadura anuncia um novo sinal
E separa todo o instinto da razão.
Nas sombras, nos sinais e nas vozes
Se fixa um tempo dimensionado
Entre quem nos carros mais velozes
Vai levando esta paz a todo o lado.


José do Carmo Francisco 

(Poema que faz parte do livro, "O Jardim que o Pensamento Permite", antologia poética sobre Monserrate)

sábado, 22 de outubro de 2016

Balada para o caderno de Teresa


Balada para o caderno de Teresa

Quando chegou um azulejo/ Pelo correio de surpresa
Aproveitando esse ensejo / Vem um bloco de Teresa.
Com um retrato antigo / Da ponte de Portimão
Estão homens de castigo / A olhar um ribeirão.
Arade com seus momentos  / Com marés do grande mar
Entre a Lua e os ventos  / Os barcos estão a oscilar.
Presos os cabos na margem / À espera do marinheiro
Numa nocturna viagem / Solitária e sem parceiro.
Só a luz duma lanterna / Com um vidro pintado
Aguardente de taberna / E um figo seco passado.
Luz que dentro do caderno / Se acende toda em beleza
Faz um poema moderno / No sorriso de Teresa.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Nuno Perestrelo)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Poema para os 70 anos de Toni


Poema para os 70 anos de Toni

(a António Simões / à memória de Homero Serpa)

A locomotiva de Mogofores chegou à tabela. Toni nasceu às dez e meia da manhã.

Luís Alberto Ferreira criou no «Mundo Desportivo» essa alcunha feliz para definir a fusão da força e da técnica. / Da sua janela de Santo Amaro de Oeiras vê os comboios da linha entre Cascais e o Cais do Sodré.

Vítor Manuel viu passar no Tramagal outro comboio com os operários das oficinas do Entroncamento. / Embora nascido nas Mouriscas, foi no Tramagal que uma carta escrita à mão o veio descobrir para em Coimbra ser um herdeiro de Toni na Académica.

Teerão, Lisboa, Coimbra e Anadia são lugares onde a locomotiva de Mogofores passou entre o fervor do relvado e a angústia do banco.

Um dia Décio de Freitas, Raúl Santos e Faro Cal explicaram como havia tantos árbitros na C.P. / Salvador Garcia vinha de Santarém mas outros vinham de Alferrarede, do Barreiro ou do Pinhal Novo. / Assim as ajudas de custo eram mesmo para embolsar.

Os meus netos mais velhos (Tomás e Lucas) chamam em Londres Toni ao meu neto mais novo. E o meu neto Pedro saberá um dia que as assinaturas de Toni e Humberto Coelho estão num livro onde o meu nome foi sonegado na bibliografia.

Uma cabina é também uma locomotiva porque o combustível que pode ser carvão, diesel ou electricidade ajuda a aquecer o coração de todos nós nas manhãs de chuva ou nas tardes de sol. / «Muda aos seis e acaba aos doze» – como na infância que é o tempo em que nem as lágrimas nem os beijos têm preço.

A locomotiva de Mogofores chegou à tabela. Toni nasceu às dez e meia da manhã.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

domingo, 2 de outubro de 2016

Entre a Chuva e o Sol


Entre a Chuva e o Sol

Há certos minutos perto de ti em certos dias de chuva e de sol que me transportam de imediato aos dias variados da Ilha de São Miguel: chuva em Ponta Delgada, sol na Ribeira Grande, chuva em Porto Formoso, sol na Maia. E assim, sucessivamente. Contigo foi quase igual: chuva à porta da estação do Metro de Telheiras, sol só muito depois quando partiste para o Areeiro, a caminho de uma ligação suburbana. Nunca percebi estas complicadas ligações entre o clima do lado de fora e o clima interior. As chuvas são muitas vezes, quase sempre, antecedidas por nuvens que parecem feitas de chumbo. E o seu peso alaga o clima sentimental interior de cada um de nós. Tudo acontece mais tarde e pior, mais devagar e mais longe. O Mundo aparece como uma patrulha hostil que nos exige os documentos e o salvo-conduto, o santo e a senha. E nem sempre os documentos estão em ordem, nem sempre o bilhete de identidade diz tudo sobre o estado civil das pessoas. Sobre a altura (da angústia) e sobre os sinais particulares (dos sentimentos) então nem é bom falar. Está tudo fora do prazo de validade e nenhuma Loja do Cidadão resolveu até agora esses problemas.
Contigo é diferente. Nos teus olhos brilha o outro sol. O da campina, o da lezíria, o das sementeiras entre cânticos de trabalho e sementes de esperança. Conseguiste conservar os elementos essenciais dessa força e desse esplendor que o sol da cidade não consegue ter. Por isso não ficaste muito incomodada com a chuva que te recebeu na porta da estação do Metro de Telheiras. Sabias que o teu olhar acabaria por empurrar as bátegas frias de encontro às nuvens mais cinzentas e mais pesadas do horizonte desta cidade.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Fred Stein)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Os pastores da cidade


Os pastores da cidade

Não vou dissertar sobre o «pastor do ser» que todo o poeta digno desse nome, afinal é. Falo do outro pastor, o pastor da cidade, o que se levanta cedo ou se deita tarde para acompanhar o seu cão no passeio à volta do quarteirão. Vivi no campo, vivo na cidade. Conheço bem o que são os cães nas quintas, nas casas, nas aldeias, nos casais. Tive um cão (o Fadista) que nunca vi entrar na porta da cozinha. Vivia no quintal, dominava a serventia entre a vinha e o pomar. Vivia no seu círculo mas não atropelava o nosso – privado, doméstico e abrigado. Hoje atravesso a cidade e vejo outro tipo de cão. Há o ácido da urina nos pneus, há a porcaria pelos passeios, há anúncios na TV, comida especial, xarope contra as lombrigas, vitaminas, coleiras. Todos os sábados de manhã eu encontro esses pastores da cidade, ternos e pacientes, na condução dos seus cães. Todos os sábados de manhã (vivo perto da Misericórdia de Lisboa) eu encontro um grupo de crianças abandonadas conduzidas pela terna, paciente, atenta e dedicada monitora para o seu passeio matinal. Nada nem ninguém pode substituir as relações verdadeiras. Ternura em segunda mão, amor sucedâneo e sem horizonte humano, nada disso serve. Por essa razão não sou capaz de compreender todos os sábados como não foram coincidentes os caminhos desses pastores da cidade com os caminhos dessas crianças abandonadas. Porque há muita criança a precisar de ternura, de atenção e de um espaço de carinho num lugar sem sobressaltos nem angústias diárias. Afinal, pensando melhor, os cães podem esperar. As crianças já esperaram demasiado tempo e o seu olhar começa a estar cristalizado nas grandes olheiras, negras e fundas, nascidas num tempo assim, tão hostil.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A sombra de Deus


A sombra de Deus

Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu filho Filipe pelo seu pequeno kispo azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a sombra de Deus.

Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada. Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do Hospital de Santa Maria.

Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida. Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.

Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza, que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal «os filhos da morta já não eram irmãos».            

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido) 

domingo, 21 de agosto de 2016

Sobre uma cerâmica de Anna Rothwell


Sobre uma cerâmica de Anna Rothwell

Feita de barro uma mulher chama a atenção
No meio da pressa das ruas de uma cidade
Assim nos mostrando a sua frágil condição
Que ninguém diz mas sabemos ser verdade

Mesmo assim tempo para dizer sua beleza
Em gestos repetidos frente a um espelho
Procurando a cada momento uma certeza
No tempo veloz que era novo logo é velho

Feita de barro uma mulher chama a atenção
Traz ao de cima as mentiras tão escondidas
De quem sabe que esconder é uma ilusão
E não pode alterar a linha das nossas vidas

Todos somos feitos de barro e de tristeza
Mas fingimos nada saber do nosso estado
Tentamos fugir à morte pela luz da beleza

Mas a morte ainda continua ao nosso lado

José do Carmo Francisco

(Escultura de Anna Rothwell)

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Retrato de mulher em Rio Maior


Retrato de mulher em Rio Maior

Dos cabelos nasce o vento que anuncia
O fim de uma Província no seu limiar
E empurra a voz com sua luz e alegria
Até às cassa e aos casais, sempre a cantar.
Nas feiras, as juntas de bois e as raparigas
No pó que o sol à tarde ajuda a assentar
As sombras não atingem as cantigas
Que os altifalantes roucos levam pelo ar.
Do preço desta resina dos pinheiros
Se compra todo o ouro do enxoval
A arca com os cordões mais derradeiros
Está no sótão; vai para a casa do casal.
E o homem da caixa preta na bicicleta
Tem o retorno para o ano apalavrado
O ouro que é seu negócio é sua meta
Dele e do vento que chega a todo o lado.

José do Carmo Francisco      

(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Marta


Marta (1985)

Nada sabes ainda dos telhados e do sol
Olhas sem ver as flores na janela.
O som dos barcos mais abaixo no rio
chega-te diluído pela distância, pelo vidro
talvez pela tua distraída maneira
de estar aqui como quem não está.
Soltas monossílabos no impulso da cadeira
- são ainda os primitivos da tua voz
a que não existe ainda e está em construção.
Sobes de tom, olhas tão profundamente
que quase assustas na serenidade.
Uma vez por outra dormes – no silêncio
dizes tudo, cansada, costas voltadas para nós.
Não tens ainda sonhos ou remorsos
demasiado pequeno é o teu universo
e levantas o olhar como quem duvida
como quem nada sabe dos telhados e do sol.


José do Carmo Francisco 

(Óleo de Maluda)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sobre Menina e Moça de Lisa


Sobre Menina e Moça de Lisa

Quando Elza foi embora
De volta ao Algarve natal
Falámos mais de uma hora
Naquele átrio principal.
Como não tinha postais
Dos seus quadros antigos
Ofereceu quatro iguais
De pintores seus amigos.
Primitivos modernos
Faltava uma designação
Nos jornais e nos cadernos
NAIFS não estava à mão.
Desenho numa gaveta
Este quadro de Lisboa
Canteiros de uma praceta
Por cima a gaivota voa.
Entre pedras do Mosteiro
E as ameias do Castelo
Olhamos um cacilheiro
E um eléctrico amarelo.
Santa Engrácia, panteão
Autocarro para Belém
Cristo Rei em oração
Reza por nós também.
Que fazemos da cidade
Trajecto de teimosia
Nas praças a liberdade
Nas casas uma alegria.
E quando o dia se cala
Das cantigas e pregões
O artista fecha a mala
Amanhã há mais razões.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Roberto Slodmank)

quinta-feira, 30 de junho de 2016

35 Anos Depois...


35 Anos Depois...

Não fazemos uma pausa à poesia.
Porque "Iniciais" é poesia.
Poesia da boa premiada pela APE
como o Prémio Revelação de Poesia (1980).

Felizmente,
35 anos depois, "Iniciais"
(inicialmente editado pela Moraes Editores, em 1981)
têm uma segunda edição
da "Apenas Livros".

Como queria José Gomes Ferreira
e quer José do Carmo Francisco:
«A poesia continua.»

Viva a Poesia!
Vivam os Poetas!

(Luís Alves Milheiro)

terça-feira, 21 de junho de 2016

Olhar o monte (Viagem)


Olhar o monte (Viagem)

Vejo o monte quando olho para ti.
Tu não sabes mas o teu olhar é uma porta aberta, um convite, uma sugestão de caminho. Olho-te na cidade e penso logo no campo, penso logo na brancura das casas, no azul das barras, no castanho das telhas. 
Cheguei aqui cansado, vinha a transpirar, os pés pesavam toneladas e, morto de sede, só descansei quando me deste um copo de água tirada de uma bilha no louceiro. A única música que aqui chega é a do vento, capaz de secar a roupa estendida e as tuas lágrimas.

Vejo o monte quando olho para ti.
Vejo nos teus passos o prenúncio do movimento. És tu que seguras o alguidar da roupa que vais estender entre a última casa e a primeira árvore. Tal como foste tu a sacudir o sono e a trazer à vida do monte a sua velocidade.

Há uma ordem, uma perfeita sintonia de aromas que mistura de modo sábio o odor das flores silvestres aqui à volta e o lento cozinhado por ti decidido no espaço da cozinha onde muitas vezes preparar a refeição é mais do que arte; é uma ciência.   

Vejo o monte quando olho para ti.
Habito o espaço sentimental desta imagem por ti povoada. É um dia luminoso, o monte repousa e apenas o esvoaçar da roupa que tu estendeste lembra que vive aqui alguém. As tarefas quotidianas ocupam os seus locatários. Uma humidade difícil de medir percorre e liga a ternura dos teus olhos à respiração da terra.

Vejo o monte quando olho para ti.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Guy Troghton)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Louvor do pastel de nata (Doce Real)


Louvor do pastel de nata (Doce Real)

Como no pódio em lugar cimeiro
Acima do queque e do croissant
O pastel de nata é o primeiro
Da mais bela fornada da manhã
O forno cozeu pão de madrugada
Não esgotou o calor e a doçura
O pão mata uma fome já esperada
A nata adoça o sal da amargura
Quem chega e se dirige ao balcão
Zangado com notícias e jornais
Recebe prazer da boca ao coração
E fica com vontade de pedir mais
No ritual da manhã de cada dia
Tem lugar ao balcão e à mesa
O pastel de nata dá a energia
Para combater a nossa tristeza

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A voz de Paulo Bragança


A voz de Paulo Bragança

Chamar-lhe pura é pecar mas por defeito
A tua voz é (ela mesma) a nossa origem
Há um país, uma nação dentro do peito
Estar a ouvir é estar à beira da vertigem

Há uma luz que se prolonga na extensão
Há uma viagem a fazer dentro da voz
Ouvir-te é ser o destino de uma oração
A ligar de novo quem se julgava a sós

Chamar-lhe pura é pecar mas por defeito
A tua voz é a que sabe juntar água e terra
Cantas e és o rio que fugiu já do seu leito
À procura de novos campos para a guerra

Quando tu cantas não há águas paradas
Na terra fértil da humidade, teu terreno
E há uma guerra, batalhas, emboscadas
Lá onde chega a tua voz e o teu veneno 

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)