quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Poema algures


Poema algures

Há um poema. Um certo poema. Julgo que esse poema é feito a partir de memórias sedimentadas nas mais pequenas gavetas do teu coração. Assim como um guarda-jóias invisível, um estojo antigo, passado de mão em mão, na mesma família, por sucessivas gerações de mulheres.  
Há um poema. Um poema algures onde deixaste o pó das brincadeiras de infância, os jogos, as cantigas, as lengalengas. Tudo aquilo que poderia sugerir um mundo organizado entre os sonhos e os seus resultados. Um mundo onde a ternura era uma janela a fechar o vento mais frio do Inverno desse tempo. Há um poema. Procuro-o nos teus gestos hoje mais comedidos e reservados, na tua voz onde se insinua a força das pausas, a grande nuvem cinzenta do tempo de hoje onde a tristeza faz a sua sementeira multiplicada.
Há um poema. Deve haver mesmo esse poema num lugar que só tu sabes. Pode não ser ainda poema, pode não ter ainda forma mas eu pressinto que ele existe, funciona, respira, articula-se entre as palavras e os sentimentos, sobe das águas mais escuras e lodosas para uma superfície onde a limpidez dita a sua regra.
Há um poema. Persigo-o ansioso todos os dias apenas guiado pela intuição e pelo instinto de julgar o teu rosto o rosto desse poema, sua origem e seu destino, sua força e sua razão de ser. Há um poema. Eu sei. Hei-de escrevê-lo a partir da límpida pontuação do teu olhar. Amanhã. Ou num amanhã futuro. No dia da tua total revelação. No lugar onde, a partir dos teus olhos, seja possível instalar uma harmonia igual à das brincadeiras da infância quando o Mundo estava organizado ente os sonhos e os seus resultados.

José do Carmo Francisco

(Ilustração de Earl Christy)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Novos poemas periféricos


Novos poemas periféricos

Um

Caem muitas folhas do Outono na igreja
Enquanto Margarida na porta dá postais
Do Advento que é o Outono da Liturgia.

Dois

A voz da mulher sobe num som perfeito
Amparada na força do órgão de tubos
Na mais solene luz do fim da nossa tarde.

Três

No olhar de Margarida e na voz/melodia
Tal como num poema eu vejo a oração
A juntar de novo o que a morte separou. 

José do Carmo Francisco   


(Óleo de Andrzej Borowski)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Poema em prosa para a mulher-menina em Dezembro


Poema em prosa para a mulher-menina em Dezembro

No teu olhar é sempre manhã.
Chegaste em Julho, estamos em Dezembro e os dias continuam cheios de luz como no Verão. No meio da neblina da noite, as luzes do outro lado da Lagoa são sentinelas a lembrar os bisonhos soldados de 1972 a fazerem a semana de campo do RI5 deste lado da Lagoa sem receio de nada porque onde hoje estão as casas de 2016 só havia solidão, silêncio e arvoredo sossegado.
Os teus passos separam a terra da água. De um lado legumes e saladas; do outro carne, peixe e marisco. Tal como há 60 anos o vinho e o colorau dão colorido e forma apetitosa ao berbigão fresco que enche o prato entre o verde da salsa e o branco do pão.
Frente à Lagoa ouve-se e pressente-se o ritmo das ondas do Oceano. De sete em sete, uma onda maior arrasta a espuma até ao meio da grande duna de areia que o vento fez crescer. Não sei o teu nome nem nunca saberei mas vejo no teu perfil de mulher-menina o assombro dos primeiros homens que (diz a lenda antiga) terão visto a primeira mulher no Mediterrâneo. Entre o espanto e o fascínio «Mariam» lhe chamaram mas os posteriores desvios semânticos acabaram por dar «Maria».
O teu rosto celebra a liturgia da abundância nos menus diferentes, na frescura das saladas ao lado do calor do forno a perdurar nos pratos mais elaborados. Mesmo quando fechas a porta a sorrir, ficamos a saber que horas depois a alegria recomeça nas mesas limpas, nos copos luminosos, nos talheres limpos à espera da festa que se repete mas não deixa de ser nova todos os dias.
No teu olhar é sempre manhã.

José do Carmo Francisco       

(Fotografia de Luís Eme)