sábado, 21 de março de 2015

Sobre Domingos Rebelo «Os emigrantes (1926)


Sobre Domingos Rebelo  «Os emigrantes» (1926)

A mulher veio da Califórnia e faz no olhar
O resumo da viagem ainda no seu início
Porque ela já foi ao outro lado do mar
Onde o sofrimento tem horário e é ofício.
 Há os dois corações nesta viola da terra
E a moldura do Santo Cristo está no lugar
A canção e a oração que o quadro encerra
São a vida que é um mistério por desvendar.
As laranjas que foram riqueza no passado
Estão num cesto a prenunciar prosperidade
No centro o olhar da rapariga está parado
No lugar onde o cais de pedra é já saudade.
Livra o casal do sol o guarda-chuva preto
Pode ser o avô ou tio, talvez até cunhado
Do abstracto se passa logo para o concreto
No quadro eterno que nunca será explicado.

José do Carmo Francisco    

(Óleo de Domingos Rebelo)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Balada do Cais da Cortiça


Balada do Cais da Cortiça 

Cais da cortiça, vapores
A caminho de Lisboa
 
Samarra de lavradores
 
Contra o frio da proa

A água do cantarinho
O mestre tem na cabina
É do poço do vizinho
Onde a rua faz esquina
 

As galeras de Pegões
 
Chegam aqui de manhã
 
Entre os gritos e razões
 
Na cadeia comarcã

E a gente dos escritórios
Nas janelas da prisão
No maço de Provisórios
Cada cigarro um tostão
 

Em certas ocasiões
 
Vem a carga diferente
A galera traz melões
 
Matam a sede à gente

Com rodas de camioneta
 
São outras velocidades
 
Viagem quase secreta
Entre duas localidades
 

Entre Montijo e Pegões
 
Levam a carga que calha
 
Ou o ferro para portões
 
Ou vinte fardos de palha

E esta galera continua
 
Numa memória já morta
 
Já vem na curva da rua
 
Onde estou à minha porta

José do Carmo Francisco       
 
 ´
(fotografia de autor desconhecido)

sábado, 7 de março de 2015

Poema para os olhos de Maria Belmira


Poema para os olhos de Maria Belmira

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo todo o fulgor do olhar dos ranchos de ceifeiros. Mas não vi ceifeiros hoje nos campos entre a antiga fronteira de Badajoz e Montemor-o-Novo onde organizo este poema debaixo de uma árvore e perto de um jardim silencioso. Não vi os ceifeiros de Fialho de Almeida na terrível faina de terem sede, separados entre si por seis metros de distância e olhando ao longe os pássaros calados, os cães com a língua de fora, as éguas paradas e tristes, o ar cada vez mais pesado e mais raro.

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo a voz dos ceifeiros saídos directamente dos poemas de Francisco Bugalho – esses mesmos que foram escritos a meia dúzia de quilómetros de Castelo de Vide. Também não vi os ceifeiros deste poeta-lavrador, ceifeiros capazes de levantarem a voz mesmo contra o vento suão, mesmo contra o calor que não afecta a força da sua ternura ao manusear os braçados de espigas como quem tira um pão cozido da arca onde repousa na viagem entre a boca do forno e o branco da mesa.

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo uma paisagem povoada por gente viva mas os meus olhos cansados trazem apenas o pó das máquinas que deixam no seu caminho uma nuvem alta entre a linha do restolho e a linha do horizonte. Aquilo que poderia ser uma forma de conhecimento e de afecto fixa-se neste poema desolado no simples registo mecânico da passagem de uma máquina silenciosa pelo chão da seara exausta.

Peço desculpa. Eu próprio já não devia ter ilusões acerca do sabor do pão que se come hoje em dia. As máquinas cortam as espigas de outra maneira, noutro ritmo e noutra velocidade. Se formos juntar a esse factor a desvalorização da água, do sal e do fermento, percebemos melhor esta actual falta de sabor do pão nas nossas mesas tão cheias de pressa e tão vazias de ternura. 

José do Carmo Francisco

(O óleo é de Marcos Damascena)