terça-feira, 25 de outubro de 2016

Monserrate, o muro


Monserrate, o muro

O som do mar alcança este muro
Que separa o arvoredo e a estrada
Aqui não há passado nem futuro
E a vida passa sem dar por nada.
O peso do silêncio está nos espaços
A envolver uma sombra e uma figura
Na estrada não se ouvem passos
E a espuma das ondas traz brancura.
Mundo animal, vegetal e mineral
São tempos fechados no portão
Fechadura anuncia um novo sinal
E separa todo o instinto da razão.
Nas sombras, nos sinais e nas vozes
Se fixa um tempo dimensionado
Entre quem nos carros mais velozes
Vai levando esta paz a todo o lado.


José do Carmo Francisco 

(Poema que faz parte do livro, "O Jardim que o Pensamento Permite", antologia poética sobre Monserrate)

sábado, 22 de outubro de 2016

Balada para o caderno de Teresa


Balada para o caderno de Teresa

Quando chegou um azulejo/ Pelo correio de surpresa
Aproveitando esse ensejo / Vem um bloco de Teresa.
Com um retrato antigo / Da ponte de Portimão
Estão homens de castigo / A olhar um ribeirão.
Arade com seus momentos  / Com marés do grande mar
Entre a Lua e os ventos  / Os barcos estão a oscilar.
Presos os cabos na margem / À espera do marinheiro
Numa nocturna viagem / Solitária e sem parceiro.
Só a luz duma lanterna / Com um vidro pintado
Aguardente de taberna / E um figo seco passado.
Luz que dentro do caderno / Se acende toda em beleza
Faz um poema moderno / No sorriso de Teresa.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Nuno Perestrelo)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Poema para os 70 anos de Toni


Poema para os 70 anos de Toni

(a António Simões / à memória de Homero Serpa)

A locomotiva de Mogofores chegou à tabela. Toni nasceu às dez e meia da manhã.

Luís Alberto Ferreira criou no «Mundo Desportivo» essa alcunha feliz para definir a fusão da força e da técnica. / Da sua janela de Santo Amaro de Oeiras vê os comboios da linha entre Cascais e o Cais do Sodré.

Vítor Manuel viu passar no Tramagal outro comboio com os operários das oficinas do Entroncamento. / Embora nascido nas Mouriscas, foi no Tramagal que uma carta escrita à mão o veio descobrir para em Coimbra ser um herdeiro de Toni na Académica.

Teerão, Lisboa, Coimbra e Anadia são lugares onde a locomotiva de Mogofores passou entre o fervor do relvado e a angústia do banco.

Um dia Décio de Freitas, Raúl Santos e Faro Cal explicaram como havia tantos árbitros na C.P. / Salvador Garcia vinha de Santarém mas outros vinham de Alferrarede, do Barreiro ou do Pinhal Novo. / Assim as ajudas de custo eram mesmo para embolsar.

Os meus netos mais velhos (Tomás e Lucas) chamam em Londres Toni ao meu neto mais novo. E o meu neto Pedro saberá um dia que as assinaturas de Toni e Humberto Coelho estão num livro onde o meu nome foi sonegado na bibliografia.

Uma cabina é também uma locomotiva porque o combustível que pode ser carvão, diesel ou electricidade ajuda a aquecer o coração de todos nós nas manhãs de chuva ou nas tardes de sol. / «Muda aos seis e acaba aos doze» – como na infância que é o tempo em que nem as lágrimas nem os beijos têm preço.

A locomotiva de Mogofores chegou à tabela. Toni nasceu às dez e meia da manhã.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

domingo, 2 de outubro de 2016

Entre a Chuva e o Sol


Entre a Chuva e o Sol

Há certos minutos perto de ti em certos dias de chuva e de sol que me transportam de imediato aos dias variados da Ilha de São Miguel: chuva em Ponta Delgada, sol na Ribeira Grande, chuva em Porto Formoso, sol na Maia. E assim, sucessivamente. Contigo foi quase igual: chuva à porta da estação do Metro de Telheiras, sol só muito depois quando partiste para o Areeiro, a caminho de uma ligação suburbana. Nunca percebi estas complicadas ligações entre o clima do lado de fora e o clima interior. As chuvas são muitas vezes, quase sempre, antecedidas por nuvens que parecem feitas de chumbo. E o seu peso alaga o clima sentimental interior de cada um de nós. Tudo acontece mais tarde e pior, mais devagar e mais longe. O Mundo aparece como uma patrulha hostil que nos exige os documentos e o salvo-conduto, o santo e a senha. E nem sempre os documentos estão em ordem, nem sempre o bilhete de identidade diz tudo sobre o estado civil das pessoas. Sobre a altura (da angústia) e sobre os sinais particulares (dos sentimentos) então nem é bom falar. Está tudo fora do prazo de validade e nenhuma Loja do Cidadão resolveu até agora esses problemas.
Contigo é diferente. Nos teus olhos brilha o outro sol. O da campina, o da lezíria, o das sementeiras entre cânticos de trabalho e sementes de esperança. Conseguiste conservar os elementos essenciais dessa força e desse esplendor que o sol da cidade não consegue ter. Por isso não ficaste muito incomodada com a chuva que te recebeu na porta da estação do Metro de Telheiras. Sabias que o teu olhar acabaria por empurrar as bátegas frias de encontro às nuvens mais cinzentas e mais pesadas do horizonte desta cidade.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Fred Stein)