terça-feira, 30 de junho de 2020

Balada para Ana da Guia no Casal da Cabrita



Balada para Ana da Guia no Casal da Cabrita

Senhora Ana da Guia
Lá no Casal da Cabrita
Guarde-me este dia
Venho fazer-lhe visita.
Com o pai veio da Vieira
Vendia peixe nas terras
Mas a morte foi certeira
Vieram outras guerras.
Vou também na carroça
Vender o queijo e o pão
Em Tomar a terra é nossa
Só na Golegã é que não.
Na noite de sexta-feira
Da ceia até à madrugada
Não havia outra maneira
Estava atenta à fornada.
Dos onze filhos nascidos
Com seis sobreviventes
Cinco romances perdidos
Nas lágrimas diferentes.
Sua força de vontade
Para não desanimar
Deixa grande saudade
Mistura a terra e o mar. 

José do Carmo Francisco

(Óleo de Antal Neogrady)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Cemistério



Cemistério

Aqui se fixam as diferenças
até na morte como mercadoria.

Dinheiro em pedra nos jazigos;
campas pobres só com a terra
– por detrás dos muros, prédios,
vozes, gente que faz barulho
e estende roupa para este sol.

Pode chegar-se aqui de “táxi”
ou também de autocarro.

Nas flores mais secas
se vai perdendo a luz.
Outras memórias, palavras,
São o lixo deste dia.

Um tempo para dizer este tempo
quando o relógio se cansa
e perde os ponteiros do coração,
um tempo para lembrar
as flores tão verdadeiras
num frasco de tofina bem lavado.

Outras facturas, outro dinheiro
se perdem nesta morte a prazo.

Morre-se também na tarde,
perguntando sempre à morte
qual a diferença de luz
entre o mármore e a terra.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Henri Matisse)
  

terça-feira, 9 de junho de 2020

Matéria reservada



Matéria reservada

                                                                 (para o Nicolau Saião)

Sombras até onde se deixa de ver, pesos herdados duma dor antiga, vozes leves que estão por decifrar, enfim tudo aquilo que, ano após ano, se acumula numa mesa à espera do adequado tratamento sentimental.
Os mais agudos esforços para não enlouquecer, as dúvidas mais dolorosas sobre o que há vinte anos era verdade reconhecida como tal, os fantasmas mais particulares, aquilo que se transporta com a gordura, a miopia, o quotidiano esforço para ganhar (ou perder) o pão e a vida.
Não há nem pode haver ministérios que disso tratem. Nem sequer ao menos haverá quem possa bem classificar. E se houvesse pasta, direcção geral ou gabinete que dela tratassem, um só autocolante ou carimbo lhe poderia servir – Matéria Reservada.   

José do Carmo Francisco

(Óleo de Edward Hooper)