quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Novo poema nº 6 para Ana Isabel


Novo poema nº 6 para Ana Isabel

Esta rua discreta tem um arco de pedra como se fosse um agrafe gigante a unir duas casas; dois blocos de telhado, a parede, as portas e as janelas.

Por aqui passaram noutro tempo muitas carruagens com gente apressada; tanto quanto se podia ter pressa no século XVIII.

Porque tudo se dilui na memória dos afectos pessoais, cinquenta e cinco anos depois da primeira passagem entre a Rua de O SÉCULO (que já foi Rua Formosa) e o Hospital de Jesus.   

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Paulo Guedes)


segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Brado e clamor nº 26 para Ana Isabel


Brado e clamor nº 26 para Ana Isabel

Hoje soube que na Festa do Jardim Infantil do meu neto António que tem cinco anos cantaram uma canção de José Mário Branco na qual se diz que «quando for grande quero ser pequeno». 

Poucos minutos depois vi um filme sobre Sandy Denny (1947-1978), vocalista do Grupo Fairport Convention e ainda agora rainha da pop inglesa cujo corpo repousa num dos cemitérios de Londres.

O segredo está em perceber que ao lado da luz da vida está o escuro da morte, entre o Príncipe Real e Putney Vale, um jardim e um cemitério, uma possível chave para «ser pequeno quando for grande» como diz a canção de José Mário Branco.

 José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


domingo, 12 de dezembro de 2021

Brado e clamor nº 21 para Ana Isabel


Brado e clamor nº 21 para Ana Isabel

Gonçalo Pereira Rosa escreve na N.G.M. que «metade dos enterros realizados em 1839 na cidade de Londres era de pequenas criaturas com menos de dez anos» e dá razão a uma ideia antiga pois «nenhuma filosofia resgata as lágrimas de uma criança».

Claro que Charles Dickens escreveu (era quase inevitável) uma mistura notável de ficção e reportagem no seu «Conto de Natal» tal como cinco anos antes já o tinha feito no seu livro «Oliver Twist».     

O segredo está em saber que os companheiros de Charles Chaplin na carroça de saltimbancos em 1910 eram do mesmo bairro pobre no qual o pai de Charles Dickens foi frequentador da prisão de devedores em Londonbridge, junto ao  Tamisa.

José do Carmo Francisco


domingo, 28 de novembro de 2021

Novo poema nº 5 para Ana Isabel


Novo poema nº 5 para Ana Isabel

«Não nos tratamos por V. Exas., não há nada disso. É uma conversa entre rapazes.» - numa carta de Maio de 1906 José Alvalade referia-se assim ao ambiente nos fundadores do Sporting Clube de Portugal.   

Tinha havido uma tentativa no ano de 1902 em Belas, outra em 1904 no Campo Grande mas só em 1906 se organizou o Sporting Clube de Portugal sob o símbolo do leão rampante do Conde de Pombeiro.

Porque é no livro de Luís Costa Dias e Paulo Barata que se explica em pormenor esse tempo dos pioneiros quando ser sócio do Clube implicava uma conduta irrepreensível e ser de boa sociedade, afinal os padrões da época.

 José do Carmo Francisco     

(Postal do Sporting CP)

 

domingo, 7 de novembro de 2021

Novo poema nº 4 para Ana Isabel


Novo poema nº 4 para Ana Isabel

Para Vergílio Ferreira «A música é sempre anterior a si, não existe no momento em que a ouvimos»; eu, modesto escriba, em Iniciais escrevi poemas para diversos compositores e intérpretes.

Um Domingo de manhã, a Filarmónica Catarinense parou à porta da casa: minha mãe fez o bolo de iogurte, minha filha Ana tinha um prato com fatias, meu pai veio encher copos de vinho para os músicos.

Porque as lágrimas não cabiam no estojo do clarinete do primo, num Domingo pouco posterior, morreu de AVC três dias depois, frente à televisão num particular Portugal-Espanha em futebol.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Novo poema nº 3 para Ana Isabel


Novo poema nº 3 para Ana Isabel

«Os livros são como o Teatro, é sempre como se fosse a primeira vez» disse Luís Miguel Cintra, encenador e actor com muitos anos de palco.

Na verdade, desde a escolha dos poemas à criação de um ficheiro no Word, o nervoso miudinho cresce e torna-se igual ao do livro anterior. E este ao anterior deste.

Porque aqui a idade não é um posto e, por mais anos que passem, a confusão permanece e a serenidade não se instala no quotidiano do autor.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Novo poema nº 2 para Ana Isabel


Novo poema nº 2 para Ana Isabel

«A Pátria só de alguns» lê-se no poema «O rio a vida» de Liberto Cruz dedicado a António Valdemar mas sendo um simples verso há nele o peso da farda e do posto, da arma e da guerra, do exílio e da morte.

Não os mesmos mas outros mais novos continuam hoje a querer uma Pátria à sua medida; rural, distante, sem voz porque calada pela força dos ditos legítimos superiores.

Porque na verdade este conflito hoje só muda de cenário e de palco mas no essencial permanece e continua como no passado.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)


quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Novo poema nº 1 para Ana Isabel

 


Novo poema nº 1 para Ana Isabel

«A Poesia não pactua com a mentira» - terá dito Stephen Spender a um jovem poeta de Goa, num ansioso e desejado encontro entre mestre e aprendiz.

Ao juntar a esta frase a informação de que foi sobre a sua poesia que Fernando Assis Pacheco elaborou uma tese de licenciatura em Coimbra, fica tudo mais claro.

Porque o Mundo é pequeno e só o Acaso é grande. Mas nada acontece por acaso.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Breve poema nº 47 para Ana Isabel

 


Breve poema nº 47 para Ana Isabel

«O meu trabalho é brincar» respondeu o meu neto António à vizinha que, na escada do prédio, queria saber dos seus trabalhos de casa; a resposta tem a ver com os seus cinco anos.

Brincar com os pneus do Jardim Infantil, brincar com os animais da selva, seja em livro ou em três dimensões, brincar com as peças do LEGO, brincar, brincar sempre – é este o seu programa.

Afinal para o António o importante é Ser; o Mundo que o rodeia vai, mais tarde ou mais cedo, ao longo da vida, indicar-lhe a importância de Ter.

José do Carmo Francisco

 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Breve poema nº 46 para Ana Isabel

 


Breve poema nº 46 para Ana Isabel

 Alguns dos algarismos do meu neto Pedro são perfeitos mas outros são mais que perfeitos; rigorosos, acabados e exactos. Quase parecem saídos do caixotim duma tipografia.

Um dia dei-lhe uma folha A5 e pedi-lhe o registo imediato da sua caligráfica obra de arte. Em 1966 a Caligrafia era uma disciplina do velho Curso Geral do Comércio; não foi assim há tanto tempo.   

Afinal no sangue pisado da vida, ninguém sabe se nas Artes ou nas Letras, vai haver para ele um futuro caminho para o seu actual talento no desenho dos algarismos.

José do Carmo Francisco          

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Breve poema nº 45 para Ana Isabel

 


Breve poema nº 45 para Ana Isabel

Meu neto Lucas passa todos os dias à porta da casa onde viveu Charles Gounod, ali a meio caminho entre Blackheath Park e o Paragon, com os patos, os ventos e os papagaios de papel.

Quando no telefone o ouço ao piano na perseguição do tom mais perfeito para uma próxima apresentação pública, percebo melhor como toda a obra de arte (até a arte pobre das palavras) precisa do seu tempo de oficina. 

Afinal os aplausos na Sala do Conservatório atingem um valor elevado pois são o preço do trabalho obscuro e continuado que foi preciso fazer para os alcançar.

José do Carmo Francisco


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Breve poema nº 44 para Ana Isabel


Breve poema nº 44 para Ana Isabel

«Gosto desta casa apesar dos bêbados durante a noite» - esta frase do meu neto Tomás explica uma ideia de pertença mesmo com a revolta, a raiva e o rancor dos noctívagos a descerem a Rua da Rosa com gritos para um Mundo que não os ouve.

Eu, pela minha parte, gosto muito das linhas rigorosas e límpidas duma casa por si desenhada em Greenwich, ali à beira do Tamisa, perto dos Museus, dos Cinemas e das Livrarias.

Afinal foi na avó Joan, na mãe Ana e no pai Ian que todos os desenhos começaram a dar razão à nossa tão conhecida frase feita - «filho de peixe sabe nadar».    

José do Carmo Francisco


terça-feira, 15 de junho de 2021

Estremadura

 


Estremadura

(para a Leonoreta Leitão)

Nas férias grandes ainda sem peso no calendário
Nos dias cheios de iodo no sol da tarde
Molhava os pés na beira do mar e não era
Essa porta nem esse caminho para sair do medo.
Ninguém tinha chaves – só tínhamos o mar
Coisa que obviamente não nos pertencia.
Nas férias grandes as pedras das casas sem mudar
A voz sufocada nos corredores compridos
Era a nossa voz a deitar para dentro
As grandes dúvidas duma porta fechada.
Ninguém tinha chaves – só tínhamos o mar
Coisa que obviamente não nos pertencia.
 
José do Carmo Francisco
 
(Fotografia de Luís Eme)

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Breve poema nº 39 para Ana Isabel


Breve poema nº 39 para Ana Isabel

 

Lugar de Ser é o título de um pequeno e modesto livro colectivo publicado em 2-6-1971, produzido a stêncil na Escola Comercial Veiga Beirão em Lisboa.

Cinquenta anos depois recordo com alguma emoção, surpresa e ternura esses tímidos  primeiros passos de um ofício a que Alves Redol, poucos anos antes, chamou «charrua em campo de pedras».  

Afinal o que hoje procuro é confirmar as palavras de Manuel Simões sobre os jovens poetas de 1971: «Eis-nos perante uma poesia que reflecte os mais secretos anseios do homem, uma poesia cáustica mas serena, portadora do futuro já em marcha.» 

 

José do Carmo Francisco


quarta-feira, 26 de maio de 2021

Abadia


Abadia

Empurro esta cancela como quem folheia
a página conhecida dum livro estimado
- isto é, devagar, sem deslumbramento nem surpresa.
Este alvoroço familiar nada tem a ver
com os livros de instrução primária
- desenhavam a família numa cadeia de obediência,
  castigo e resignação.
Sinto que a vida é de facto um campo de batalha
e não uma sucessão de dias alinhados pelo destino
- basta ver esta criança
  que é mostrada como se fosse uma bandeira.
Demoro-me a olhar o fogão da cozinha
- a sua muda resposta às sucessivas descobertas da técnica
  foi a permanência do seu trabalho eficiente
  a quantidade e a qualidade daquilo que nele se pode fazer
  hoje como sempre.
A mesa transforma-se numa refeição de palavras
numa confluência de sentimentos
e ganha uma súbita segunda realidade
- é quando as janelas abertas
  deixam entra o sol e o pó que cada um de nós arrastou na estrada
  (isto é os nosso problemas que não cabem dentro dos automóveis).

 José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)

terça-feira, 11 de maio de 2021

25 de Abril para uma jovem

 


25 de Abril para uma jovem
 
Na caixa postal da tua idade
Deposito aos poucos a memória
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A fome diária mal disfarçada
Ao longo das batatas da semana.
Os pés descalços na missa de domingo
Entre botas de quem podia mais.
A lágrima numa medalha ao sol
Num dia dez de Junho na TV.
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A morte a instalar o luto
Por telefone e telegrama à porta.
A Europa num comboio nocturno
Sem fronteiras para a dor.
As prisões como navios pedidos
À procura duma chave ou da luz.
 
Podia ser um pedaço de pão
Hoje não se curvam já a ele
Nem o beijam em respeito à vida.
 
Perdem-se em buracos de som
Sapatos de ténis debaixo da terra.
 
E não escrevem cartas nem escrevem
O que não sabem nem procuram.
 
In «Leme de Luz»  (edição Sol XXI Poesia - 1993)   
 
José do Carmo Francisco

(Desenho de Manuel Ribeiro Pavia)

 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Até Esse Momento


ATÉ ESSE MOMENTO

Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó
 
Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas
 
Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece
 
Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas
 
Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono
 
Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo
 
Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto
 
José do Carmo Francisco
 
(Óleo de Edward Hooper)


quarta-feira, 14 de abril de 2021

A sombra de Deus


A sombra de Deus

Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu filho Filipe pelo seu pequeno kispo azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a sombra de Deus.

Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada. Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do Hospital de Santa Maria.

Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida. Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.

Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza, que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal «os filhos da morta já não eram irmãos».            

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Valter Vinagre)


quarta-feira, 31 de março de 2021

75 (Fernando Venâncio)

 


75 (Fernando Venâncio)

Passava pela Rua Pedro Dias a caminho do Hospital de Jesus, dez anos de viagens pedestres também para o Instituto Britânico antes do quisto dermóide, gigantesco e teimoso. Anos depois, nova operação. Hoje a mesma geografia; só mudou a abordagem das palavras porque o selvagem continua ao piano.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


sábado, 20 de março de 2021

1923 (As ruas de Buenos Aires)



1923 (As ruas de Buenos Aires)

Quando em 1923 Jorge Luís Borges viu publicado o «Fervor de Buenos Aires», resolveu aproveitar os colóquios e as palestras do British Council para colocar exemplares do seu livro nos bolsos das gabardinas e dos sobretudos do público presente na sala. Havia leitores garantidos porque não se registavam devoluções. Hoje continua quase tudo como em 1923; as alterações são apenas de pormenor.

José do Carmo Francisco

 

domingo, 7 de março de 2021

2006 (O esquilo no jardim)

 


2006 (O esquilo no jardim)
 
Meu neto Pedro elabora
Uma banda desenhada
Em menos de meia hora
E ninguém deu por nada.
Numa cidade escocesa
Em particular excursão
O esquilo foi a surpresa
Que armou a confusão.
Foi um esquilo de jardim
Que queria travar o passo
De quem assado ou assim
Era intruso no seu espaço.
Com respeito ao animal
Assustou, foi assustado
Tudo tem uma moral 
Vai comigo a todo o lado.
 
José do Carmo Francisco
 
(Fotografia de autor desconhecido)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

 


327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

O meu caderno azul continua igual a 1978, cansei-me de riscar os nomes dos mortos; na Literatura não funcionam os parâmetros do Registo Civil. Sei que o número mudou muito: de 327819 passou a 3427819 e de 3427819 passou a 213427819 mas quando quero mesmo ouvir Alexandre O´Neill abro um dos seus livros e percebo que o Mundo pouco mudou desde 1978.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Alexandre Delgado)


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre um tema de Emanuel Félix

 


Sobre um tema de Emanuel Félix

(poema - autógrafo para Manuel Emílio Porto)
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalha a noite inteira
Numa faina de alegria
E faz à sua maneira
Sumário dum novo dia
Como se uma feiticeira
Desenhasse a profecia
Duma vida verdadeira
Longe da monotonia
 
O motor duma traineira
Vem acordar o poema
Numa mesa de madeira
O poeta tem um dilema
Há a palavra pioneira
Que desenha no cinema
O fogo de uma lareira
Criando um novo sistema
O poeta escuta a traineira
Que dá a força ao poema
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
José do Carmo Francisco  
 
(Óleo de Charles Simpson)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Memória justificativa do livro «The Busby Years»


Memória justificativa do livro «The Busby Years»
 
(a Francisco José Viegas, autor de «Morte no Estádio»)
 
A morte será também um fuso horário
Um meridiano de silêncio e de escuridão
Entre a água do rio e a madeira do bosque
Todos trazemos uma bagagem de mortos
Este livro evoca os jogadores do M. United
Perdidos num desastre aéreo em Munique
 
Há a nossa memória de Pavão nas Antas
No jogo treze e no minuto treze a morrer
Em Coimbra, Nené perdido num desastre
Quando o mini não desfez a curva grande
Em Lisboa Toni Kakinda a forte esperança
Da equipa de Caneira e de Simão Sabrosa
Antes Pepe em Belém de vinte e três anos
Com a mãe a trocar bicarbonato por potassa
 
Nunca se fala nos jornalistas também mortos
Os enviados especiais a esse lugar de morte
De onde já não é possível escrever notícias
Morreram todos assim no seu fato completo
Caneta de tinta permanente e bloco de notas
Cachimbo e todos eles de chapéu à Borsalino
Mas tirando as suas famílias e alguns colegas 
Pouca gente recordará hoje os seus nomes
 
Comprei o livro numa livraria em frente
Ao portão do Observatório Astronómico
A separar os dois lugares há um relvado
Uma metáfora imediata de todos os altares
Na liturgia dum jogo afinal mais que jogo
A memória activa, o espaço de sentimento
Lugar verde onde ficaram todos os sonhos
Adormecidos devagar pela diária rotina
 
A vida é na verdade a preto e branco
Por isso estas fotografias são verdade
A cor é apenas a mentira consentida
Só há estas duas cores nas lágrimas
O mesmo para o medo, para a morte
Escusamos de procurar o colorido
A vida é na verdade a preto e branco
E ficou nos velhos álbuns de família
 
Passam por mim japoneses de uniforme
Jovens alunos em passeio de finalistas
Não pensam na morte sequer Hiroshima
Não reparam no livro que levo na mão 
Querem apenas viver e têm a sua pressa
A morte será também um fuso horário
 
José do Carmo Francisco  
        
    (Fotografia de Luís Eme)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre um tema de Vitorino Nemésio

 


Sobre um tema de Vitorino Nemésio
 
                                                                                    Viver nas ilhas pequenas
                                                                         É comprar paz com desconto      
(Vitorino Nemésio)
 
Viver nas ilhas pequenas
É ter mais tempo nos dias
Entre manhãs tão serenas
E as noites longas e frias
 
O dia tem horas cheias
Passam os vários vapores
E na sombra das baleias
Há vozes de trancadores
 
O vinho das cepas velhas
Desce com a neve do Pico
Desde a porta até às telhas
É nesta adega que eu fico
 
No sossego das lagoas
Na distância das fajãs
Perdi a voz das pessoas
Na gramática das manhãs
 
Viver nas ilhas pequenas
É comprar paz com desconto
Ter numa factura apenas
A vida ponto por ponto
 
José do Carmo Francisco  

(Óleo de Henry Moret)

sábado, 16 de janeiro de 2021

Não me venham com cantigas (para J.H. Santos Barros 1946-1983)

 


Não me venham com cantigas (para J.H. Santos Barros 1946-1983)
 
Claro que fazer versos dói, não duvido, mas o pior é doer em mim
o que fizeram aos teus versos, soltando os cães que os dizimaram
fingindo esquecer que a melhor homenagem possível é a de respeitar
os teus poemas dos anos 60, 70 e 80. Mas não, mas não.
Como se não bastasse a tragédia de 83, o país de sacanas e de analfabetos
celebrou em trágico os teus 75 anos no passado dia um de Janeiro.
Havia o morto que fala, o cantor que não canta, o juiz que trabalha na TV,
temos um livro povoado de erros crassos e de gralhas que também são erros.
Ao contrário de ti não digo «venham-me com cantigas» mas sim
«não me venham com cantigas» também porque já não tenho idade.
Porque um dia terei de explicar à tua neta que vive nos Estados Unidos da América
esta trapalhada bem portuguesa. Porque ela usa o nome da família da Ivone em Grândola
um nome que define una medida para servir a aguardente nas tabernas.
E eu não sou capaz. Vai para além do meu entendimento.    
 
José do Carmo Francisco  

(Desenho de Cruzeiro Seixas)


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Balada da sardinheira da Abadia

 


Balada da sardinheira da Abadia
 
Manuel Ribeiro de Pavia
Do Alentejo profundo
Faz da Vieira de Leiria
O desenho do seu mundo.
Almocreves nas galeras
Com a pressa de chegar
Sem paragens ou esperas
Voltam as costas ao mar.
A mais bela sardinheira
Canastra não cabe mais
Saiu da Praia da Vieira
Para os distantes casais.
Há quem não tenha dinheiro
Paga-se em quartas de milho
Este dia vive-se inteiro
E assim se cria um filho.
Casas de roupa estendida
Seja dúzia ou quarteirão
A sardinha traz nova vida
A quem a come no pão.
Mesmo no rol dos fiados
Tem cada dia a surpresa
Sabe escolher dos dois lados
Toucinho ou peixe na mesa.
Fritas, cozidas ou assadas
As sardinhas estão no pão
Com sopa de misturadas
A mais feliz refeição.
Esta  bela sardinheira
Da Vieira de Leiria
Caminha a manhã inteira
Para chegar à Abadia.
Com rodilha feita em casa
Ou comprada numa feira
O calor do sol em brasa
Não detém a sardinheira.
Sardinheira do meu sonho
Está no Liceu de Leiria      
Na balada que proponho
Só sobeja a melodia.
 
José do Carmo Francisco   

(Desenho de Manuel Ribeiro Pavia)