quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Os pastores da cidade


Os pastores da cidade

Não vou dissertar sobre o «pastor do ser» que todo o poeta digno desse nome, afinal é. Falo do outro pastor, o pastor da cidade, o que se levanta cedo ou se deita tarde para acompanhar o seu cão no passeio à volta do quarteirão. Vivi no campo, vivo na cidade. Conheço bem o que são os cães nas quintas, nas casas, nas aldeias, nos casais. Tive um cão (o Fadista) que nunca vi entrar na porta da cozinha. Vivia no quintal, dominava a serventia entre a vinha e o pomar. Vivia no seu círculo mas não atropelava o nosso – privado, doméstico e abrigado. Hoje atravesso a cidade e vejo outro tipo de cão. Há o ácido da urina nos pneus, há a porcaria pelos passeios, há anúncios na TV, comida especial, xarope contra as lombrigas, vitaminas, coleiras. Todos os sábados de manhã eu encontro esses pastores da cidade, ternos e pacientes, na condução dos seus cães. Todos os sábados de manhã (vivo perto da Misericórdia de Lisboa) eu encontro um grupo de crianças abandonadas conduzidas pela terna, paciente, atenta e dedicada monitora para o seu passeio matinal. Nada nem ninguém pode substituir as relações verdadeiras. Ternura em segunda mão, amor sucedâneo e sem horizonte humano, nada disso serve. Por essa razão não sou capaz de compreender todos os sábados como não foram coincidentes os caminhos desses pastores da cidade com os caminhos dessas crianças abandonadas. Porque há muita criança a precisar de ternura, de atenção e de um espaço de carinho num lugar sem sobressaltos nem angústias diárias. Afinal, pensando melhor, os cães podem esperar. As crianças já esperaram demasiado tempo e o seu olhar começa a estar cristalizado nas grandes olheiras, negras e fundas, nascidas num tempo assim, tão hostil.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A sombra de Deus


A sombra de Deus

Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu filho Filipe pelo seu pequeno kispo azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a sombra de Deus.

Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada. Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do Hospital de Santa Maria.

Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida. Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.

Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza, que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal «os filhos da morta já não eram irmãos».            

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)