segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre um tema de Vitorino Nemésio

 


Sobre um tema de Vitorino Nemésio
 
                                                                                    Viver nas ilhas pequenas
                                                                         É comprar paz com desconto      
(Vitorino Nemésio)
 
Viver nas ilhas pequenas
É ter mais tempo nos dias
Entre manhãs tão serenas
E as noites longas e frias
 
O dia tem horas cheias
Passam os vários vapores
E na sombra das baleias
Há vozes de trancadores
 
O vinho das cepas velhas
Desce com a neve do Pico
Desde a porta até às telhas
É nesta adega que eu fico
 
No sossego das lagoas
Na distância das fajãs
Perdi a voz das pessoas
Na gramática das manhãs
 
Viver nas ilhas pequenas
É comprar paz com desconto
Ter numa factura apenas
A vida ponto por ponto
 
José do Carmo Francisco  

(Óleo de Henry Moret)

sábado, 16 de janeiro de 2021

Não me venham com cantigas (para J.H. Santos Barros 1946-1983)

 


Não me venham com cantigas (para J.H. Santos Barros 1946-1983)
 
Claro que fazer versos dói, não duvido, mas o pior é doer em mim
o que fizeram aos teus versos, soltando os cães que os dizimaram
fingindo esquecer que a melhor homenagem possível é a de respeitar
os teus poemas dos anos 60, 70 e 80. Mas não, mas não.
Como se não bastasse a tragédia de 83, o país de sacanas e de analfabetos
celebrou em trágico os teus 75 anos no passado dia um de Janeiro.
Havia o morto que fala, o cantor que não canta, o juiz que trabalha na TV,
temos um livro povoado de erros crassos e de gralhas que também são erros.
Ao contrário de ti não digo «venham-me com cantigas» mas sim
«não me venham com cantigas» também porque já não tenho idade.
Porque um dia terei de explicar à tua neta que vive nos Estados Unidos da América
esta trapalhada bem portuguesa. Porque ela usa o nome da família da Ivone em Grândola
um nome que define una medida para servir a aguardente nas tabernas.
E eu não sou capaz. Vai para além do meu entendimento.    
 
José do Carmo Francisco  

(Desenho de Cruzeiro Seixas)


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Balada da sardinheira da Abadia

 


Balada da sardinheira da Abadia
 
Manuel Ribeiro de Pavia
Do Alentejo profundo
Faz da Vieira de Leiria
O desenho do seu mundo.
Almocreves nas galeras
Com a pressa de chegar
Sem paragens ou esperas
Voltam as costas ao mar.
A mais bela sardinheira
Canastra não cabe mais
Saiu da Praia da Vieira
Para os distantes casais.
Há quem não tenha dinheiro
Paga-se em quartas de milho
Este dia vive-se inteiro
E assim se cria um filho.
Casas de roupa estendida
Seja dúzia ou quarteirão
A sardinha traz nova vida
A quem a come no pão.
Mesmo no rol dos fiados
Tem cada dia a surpresa
Sabe escolher dos dois lados
Toucinho ou peixe na mesa.
Fritas, cozidas ou assadas
As sardinhas estão no pão
Com sopa de misturadas
A mais feliz refeição.
Esta  bela sardinheira
Da Vieira de Leiria
Caminha a manhã inteira
Para chegar à Abadia.
Com rodilha feita em casa
Ou comprada numa feira
O calor do sol em brasa
Não detém a sardinheira.
Sardinheira do meu sonho
Está no Liceu de Leiria      
Na balada que proponho
Só sobeja a melodia.
 
José do Carmo Francisco   

(Desenho de Manuel Ribeiro Pavia)