segunda-feira, 26 de junho de 2017

Pequeno retrato dum olhar de mulher


Pequeno retrato dum olhar de mulher

Existe, no olhar cansado de Fernanda, uma pequena mas dolorosa percentagem de melancolia. Como se surgisse, no seu campo visual, para além de eléctricos cheios como cachos de uvas, uma luz cinzenta capaz de tudo reduzir a escuro, a estranho e a triste. Um telefone sacode a monotonia da tarde. São pequenas conversas, pedidos de ajuda, desabafos, ligeiros acrescentos a outras conversas já passadas mas, afinal, sempre presentes. Ao fundo os livros arrumados nas estantes esperam de Fernanda a demorada atenção de quem sabe uma verdade essencial: depois da invenção da roda só o livro se pode comparar em importância na vida do Mundo. A roda deu origem a todas as viagens; o livro partilhou todas as aventuras do pensamento. Existe, no olhar cansado de Fernanda, uma busca incessante de harmonia. Aos poucos a porta da livraria transforma-se num quadro onde as personagens se cruzam ao ritmo de uma marcação teatral. Como se cada toque de campainha de eléctrico fosse um relógio a dar as suas badaladas para acordar Fernanda da sua melancolia. Existe, no olhar cansado de Fernanda, o prenúncio de um novo povoamento do seu espaço. A rua vai ficar mais alegre, as cores das pessoas e das coisas vão mudar, o tempo vai ter um ritmo de alegria e de descoberta, o calor do Verão vai trazer uma nova cadência aos dias de Fernanda que percorre, aos poucos, um caminho de imprevistas emoções.
Existe, no olhar cansado de Fernanda, uma inquieta mas teimosa procura de outros ritmos de vida e de outros lugares de ser. Onde seja possível conjugar todos os verbos de uma nova gramática de sons. Mais vivos, mais quentes, mais inteiros e mais felizes.    

José do Carmo Francisco

(Óleo de Fréderick Carl Friesske)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Uma gramática de luz



Uma gramática de luz

A cidade, esta cidade de Lisboa tem uma gramática de luz que só se descobre quando, por um acaso no seu quotidiano sempre igual, o cidadão que a habita se vê obrigado a levantar-se muito cedo. Por muito cedo entendemos as seis horas da manhã. Mas não só o levantar; era preciso levar um elemento da família ao local de trabalho num automóvel que por acaso tinha uma marcação á porta da oficina da marca antes das oito horas da manhã para a revisão dos 135 mil quilómetros. De Moscavide ao Aeroporto foi como se estivesse a chegar de uma viagem à Europa. A cidade começava a abrir os olhos e, tal como uma pessoa, dava início a mais um dia sacudindo o sono da noite e dando os primeiros passos. Era ainda muito cedo, tão cedo que cheguei á oficina às sete horas em ponto. Tinha sido uma viagem verde desde o verde simpático dos semáforos ao verde feliz das árvores da Avenida Defensores de Chaves. Pouco a pouco a luz avança contra a névoa, uma ambulância sacode a pacatez da avenida com o som estridente da sua urgência. Será um velhinho ou uma criança, o início ou o fim da maratona que é, afinal, a vida?. Não sei nem nunca saberei. A velocidade não permite a identificação. Estou sentado num velho automóvel à porta de uma oficina para entregar à competência dos técnicos a revisão dos 135 mil quilómetros. Entretanto a gramática de luz da cidade vai conjugando as várias formas do verbo sorrir. A mulher da limpeza, o mecânico a chegar, o segurança que sai de turno, todos me dizem bom dia e me abraçam num sorriso lento, cósmico e doce. E chega a minha vez de dizer em voz alta, embalado na gramática da luz: Bom dia, Lisboa! Minha Cidade, Meu amor!        

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Alexandre Nobre)