quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

 


327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

O meu caderno azul continua igual a 1978, cansei-me de riscar os nomes dos mortos; na Literatura não funcionam os parâmetros do Registo Civil. Sei que o número mudou muito: de 327819 passou a 3427819 e de 3427819 passou a 213427819 mas quando quero mesmo ouvir Alexandre O´Neill abro um dos seus livros e percebo que o Mundo pouco mudou desde 1978.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Alexandre Delgado)


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre um tema de Emanuel Félix

 


Sobre um tema de Emanuel Félix

(poema - autógrafo para Manuel Emílio Porto)
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalha a noite inteira
Numa faina de alegria
E faz à sua maneira
Sumário dum novo dia
Como se uma feiticeira
Desenhasse a profecia
Duma vida verdadeira
Longe da monotonia
 
O motor duma traineira
Vem acordar o poema
Numa mesa de madeira
O poeta tem um dilema
Há a palavra pioneira
Que desenha no cinema
O fogo de uma lareira
Criando um novo sistema
O poeta escuta a traineira
Que dá a força ao poema
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
José do Carmo Francisco  
 
(Óleo de Charles Simpson)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Memória justificativa do livro «The Busby Years»


Memória justificativa do livro «The Busby Years»
 
(a Francisco José Viegas, autor de «Morte no Estádio»)
 
A morte será também um fuso horário
Um meridiano de silêncio e de escuridão
Entre a água do rio e a madeira do bosque
Todos trazemos uma bagagem de mortos
Este livro evoca os jogadores do M. United
Perdidos num desastre aéreo em Munique
 
Há a nossa memória de Pavão nas Antas
No jogo treze e no minuto treze a morrer
Em Coimbra, Nené perdido num desastre
Quando o mini não desfez a curva grande
Em Lisboa Toni Kakinda a forte esperança
Da equipa de Caneira e de Simão Sabrosa
Antes Pepe em Belém de vinte e três anos
Com a mãe a trocar bicarbonato por potassa
 
Nunca se fala nos jornalistas também mortos
Os enviados especiais a esse lugar de morte
De onde já não é possível escrever notícias
Morreram todos assim no seu fato completo
Caneta de tinta permanente e bloco de notas
Cachimbo e todos eles de chapéu à Borsalino
Mas tirando as suas famílias e alguns colegas 
Pouca gente recordará hoje os seus nomes
 
Comprei o livro numa livraria em frente
Ao portão do Observatório Astronómico
A separar os dois lugares há um relvado
Uma metáfora imediata de todos os altares
Na liturgia dum jogo afinal mais que jogo
A memória activa, o espaço de sentimento
Lugar verde onde ficaram todos os sonhos
Adormecidos devagar pela diária rotina
 
A vida é na verdade a preto e branco
Por isso estas fotografias são verdade
A cor é apenas a mentira consentida
Só há estas duas cores nas lágrimas
O mesmo para o medo, para a morte
Escusamos de procurar o colorido
A vida é na verdade a preto e branco
E ficou nos velhos álbuns de família
 
Passam por mim japoneses de uniforme
Jovens alunos em passeio de finalistas
Não pensam na morte sequer Hiroshima
Não reparam no livro que levo na mão 
Querem apenas viver e têm a sua pressa
A morte será também um fuso horário
 
José do Carmo Francisco  
        
    (Fotografia de Luís Eme)