quinta-feira, 27 de agosto de 2020

As mãos da mulher-menina na igreja de Ruslam Botiev



As mãos da mulher-menina na igreja de Ruslam Botiev

As mãos da mulher-menina são um búzio no qual se ouve o rumor antigo da cidade, seus pregões do passado (Fava rica!, Viva da Costa!, Ferro velho!), seus apitos de sinaleiro e campaínhas de eléctrico com atrelado no trânsito febril, sua espuma branca no estuário do Rio Tejo atrás dos velozes rebocadores.  
Há nestas mãos um calor inesperado, talvez resíduo do primeiro fogo da manhã, o que acendeu o dia, aqueceu o leite e o pão depois de secar as lágrimas de quem chegou exausto à manhã, cansado dos pesadelos da noite e das suas peripécias. Há nestas mãos um refúgio, um reduto, uma mina. As memórias, os sentimentos, a água fresca, tudo se conjuga para apaziguar o espírito inquieto pelas dúvidas do quotidiano hostil. Há nestas mãos um separador entre paisagem e povoamento, entre terra e mar, entre luz e escuridão. Aqui nasce a ternura, sua humidade e sua força por vezes inesperada. Há nestas mãos o som de um clarim, o ritmo de um tambor, uma ordem unida a convocar os dispersos elementos sentimentais para um piquete de bisonhos sapadores da alegria teimosa que, mesmo nos momentos mais cinzentos, empurra o nosso tempo interior para as praças onde a cidade reconhece e proclama o seu alfabeto de luz e a sua gramática de alegria.
As mãos da mulher-menina juntam-se ao fim do dia quando se ouve o sino de uma igreja perto do Cais dos Soldados as convocar as palavras mais obscuras para uma oração que junta de novo tudo o que a morte separou.   

[Crónicas do Tejo 229]

José do Carmo Francisco

(Aguarela de Ruslam Botiev)   

domingo, 16 de agosto de 2020

Balada do Vale de Janelas



Balada do Vale de Janelas

                                   (poema autógrafo para Luís Santos)

O parque de luxo em frente
Automóveis de cilindrada
Com lombas já é diferente
Sendo rua não é a estrada.
Tempo ideal do desporto
Com carrinhos e relvado
Viatura em ponto morto
Frente ao vale encantado.
E no sossego da neblina
Não há tempo ou demoras
Cada burgo, uma piscina
Não se dá por estas horas.
No som da rebentação
O ritmo até ganha asas
No contrário do Verão
Vale o calor das brasas.
Sabendo que tudo alcança
Seu estatuto adequado
A corrida duma criança
Vai chegar a todo o lado.
Na varanda deste café
Onde espaço não confina
Esta balada é o que é
Continua e não termina.

José do Carmo Francisco 

(Óleo de Heinrich Vogeler)   

sábado, 1 de agosto de 2020

Anabela na Coelho da Rocha



Anabela na Coelho da Rocha

Uma lisboeta exilada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Tem saudades verdadeiras
Dos lugares e capelistas
Onde havia sardinheiras
E se compravam revistas

Plateia, Século Ilustrado
Flama, Crónica Feminina
Os homens iam para o lado
As mulheres junto à esquina

Onde grupos de varinas
Vendiam o peixe na rua
E no pó das oficinas
Dormia a sombra da lua

Onde ainda havia carroças
Petróleo, azeite, verduras
As batas brancas das moças
Eram luz das ruas escuras

Onde o vinho e o carvão
Se vendiam numa taberna
E os copos desse balcão
Brilhavam pela lanterna

Onde havia barbearias
E retratos pendurados
Falavam todos os dias
De jogadores admirados

Onde à noite os ardinas
Trazem notícias na mão
As palavras pequeninas
Não chegam ao coração

Eléctricos de atrelado
Com bilhetes de operário
Na paragem do passado
A vida anda ao contrário

Ninguém toca campainha
A dar o sinal de partida
No assento de palhinha
Está sentada a nossa vida

É uma vida misteriosa
Que fica por desvendar
E a poesia tão teimosa
Não desiste de cantar

Uma lisboeta isolada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Casa Fernando Pessoa, 30-11-2006

            José do Carmo Francisco             

(Fotografia de J. C. Alvarez)