domingo, 30 de março de 2014

A Voz de Fernanda


A voz de Fernanda

No som da tua voz há uma mistura
De alegria e de tristeza combinadas
Há nela todo o calor da tua ternura
Mais o frio trazido nas madrugadas

Oiço o som das tardes de sementeira
Na voz dentro do telefone da cidade
No entanto a sensação é verdadeira
Porque tudo na tua voz fala verdade

No som da tua voz há uma mistura
Do campo e da cidade de ruas vazias
Onde autocarros cheios de amargura
Passam junto à tua casa todos os dias

Oiço nela o som das tarefas da cozinha
Sinto nela o calor do forno a cozer pão
A tua voz nunca está longe nem sozinha
Está comigo entre o ouvido e o coração


José do Carmo Francisco

(Óleo de Karl Schmidt)

domingo, 16 de março de 2014

O gato da Fernanda - nove fragmentos


O gato de Fernanda – nove fragmentos

Atento, discreto, pacato. No perímetro da luz, olha a dona. O gato.

No lume aceso com a lenha do barracão antigo, as sombras são afastadas até ao sótão da infância. Aos gatos, sua paisagem, seu povoamento.

Que força empurra o gato frente ao sol no castanho-luz do telhado?

Teu gato a quem a chuva proíbe telhados e terraços. Veio do Egipto num navio de Veneza. No Cacém, sorri à dona portuguesa.

Terra trazida. Pequenas partículas de chuva nos limões e nas maçãs, invisíveis memórias de uma terra trazida. Minha terra, perto do teu gato.

Vejo intervalos de sol nos telhados do bairro, humidade permanente a respirar nas telhas como se o prédio fosse um corpo cansado, humano. O gato espreita.

Roubar alguns cabelos teus para fazer cordas de uma guitarra. Suave melodia, frente ao gato.

Há no teu olhar telhados infinitos, memória de paquetes brancos no rio e de sardinheiras vermelhas na varanda ao lado. Luz e calor. Gatos e sorrisos.

Há na tua voz um som que incorpora os sinos de Lisboa. De São Roque à Sé, da Conceição Velha à Madre de Deus. Toda a geografia de um afecto assim reproduzido, junto ao gato na janela.

José do Carmo Francisco 

(óleo de Carla Raadsveld)