quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Balada da Rua de Baixo



Balada da Rua de Baixo

Rua de Baixo, meu mundo
Onde eu regresso cansado
Quando o olhar é profundo
Já andou por todo o lado

São casas sem ninguém
De famílias desligadas
Não se ouve a voz da mãe
Na névoa das madrugadas

Meu berço e minha escola
Minha casa e minha igreja
O amor não pede esmola
Nas esquinas da inveja

Minha paisagem saudosa
Povoada por destroços
Duma sede mais gasosa
Que a água destes poços

Filarmónica formada
Manhã cheia de brancura
Há festa não tarda nada
Na rua desta amargura

Sete ondas repetidas
São sete beijos do mar
Na areia das nossas vidas
Já só podemos cantar

Pode-se cantar um fado
Feito só de melodia
Um homem fica calado
Ao ver a fotografia

Minha rua inicial
A vida, anos primeiros
Onde passou triunfal
A paixão dos baleeiros

José do Carmo Francisco  

(O óleo é de Vilhelm Hammershoi) 

   

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Balada da Praça da Fruta



Balada da Praça da Fruta
(a Carlos Querido)

João Cristo, sua cocheira
Onde o meu avô sabia
Que a burra trabalhadeira
Era a dez tostões por dia
Ficava ela a descansar
Nas cocheiras da cidade
Desconfiada do lugar
E moscas em quantidade
Minha tia Francelina
Nascida no Zambujal
Vinha vender obra fina
Os bichos do seu quintal
Numa carroça pequena
É que o seu mundo cabia
Sempre calma e serena
Dava-me um beijo e sorria

Exame era uma guerra
Bebemos uma gasosa
O grupo da minha terra
Não levou uma raposa
Nos armazéns do Chiado
Pronto-a-vestir é um fato
Nunca tinha reparado
Neste novo artesanato
Meu exame da terceira
Foi feito sem companhia
Em Abril, segunda-feira
Já não me lembro o dia
Chamado para a inspecção
Sou dado como capaz
Dentro duma contradição
Não sou guerra mas paz
Minha prima Deolinda
Professora de crianças
Na doçura que não finda
Dava-me muitas esperanças
Suas torradas matinais
A caminho do regimento
Davam-me forças especiais
Para marcha e movimento
  
Fosse das suas orações
Ou fosse da entrevista
Eu passei sem ralações
E fiquei em contabilista
Com três filhos crescidos
E acrescentado um neto
Compro beijinhos pedidos
E cavacas no Gato Preto
Praça da Fruta eterna
Onde o mundo nunca pára
És tão antiga e moderna
Porque és uma praça rara
Povoada por mil paixões
Todos nós mesmo distantes
Trouxemos nos corações
A força dos teus instantes
E mesmo na chuva londrina
Tomas, meu neto à escuta
Recorda Santa Catarina
E lembra a Praça da Fruta

José do Carmo Francisco   

(Fotografia de Luís Milheiro)
   
   

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Balada da carreira da viúva



Balada da carreira da viúva

Bilhetes para o passado
Não os tem o cobrador
Quem os tivera comprado
Iria até seja onde fôr

O tempo em que os beijos
Não tinham preço ou valor
As lágrimas e os desejos
Eram grátis como o amor

Da Meda para o Pinhão
Ou no sentido contrário
Viagem dum coração
Capaz de ser solidário

Meter dentro da carreira
Os amigos de Joaquim
Sentados à sua beira
Uma viagem sem fim

Para sair em Vilarouco
Ou entrar em Ervedosa
Na viagem pouco a pouco
A carreira é vagarosa

Em S. João da Pesqueira
Desce quem vem da Horta
E ao sair desta carreira
Vai e não fecha a porta

Poço do Canto é que queria
Salvar uma alma sedenta
Camioneta desta alegria
Nunca passa dos quarenta

Entre Touça e Sequeira
Se perdeu o meu passado
Na viagem da carreira
Ninguém vai aqui ao lado

Joaquim do Nascimento
Na memória ao volante
Este livro é um momento
E a vida é só um instante

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de autor desconhecido)