sábado, 27 de janeiro de 2018

Rua Sacadura Cabral (Montijo)


Rua Sacadura Cabral (Montijo)

A minha infância cabe toda numa telefonia
Onda curta, média, modulação de frequência
O telefone que toca sempre ao fim do dia
Matos Maia sabe como manter a audiência.
O senhor Messias abre o dia na Rádio Rural
Para o «serviço seis, sala quatro, cama dois»
A radionovela parava então um certo Portugal
Até aos sete anos fui aquilo que serei depois.
«Candeeiros bem bonitos, modernos, originais»
Ouvia eu de Lisboa nos Emissores Associados
Hoje sei que tudo isso foi para nunca mais
Porque os modelos estão todos ultrapassados.
O comboio para Setúbal parava na Jardia
Montijo tinha uma estação CP hoje perdida
A minha infância ficou dentro da telefonia
Perdida em todas as mudanças desta vida. 

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Autor desconhecido)

sábado, 20 de janeiro de 2018

Poema para as Amigas do Peito – Santa Maria


Poema para as Amigas do Peito – Santa Maria

Num olhar e num sorriso
Na voz que tudo serena
A bata branca é o juízo
Na nossa vida pequena.
Porque seja lá onde fôr
Nasce um lema de vida
Única medida do amor
É um amar sem medida.
É não pensar no retorno
Ou na possível vantagem
O olhar é como um forno
Onde o calor é coragem.
É não pensar na tristeza
Na esquina de cada dia
A esperança é a certeza
Dum olhar feito alegria.
É não pensar no escuro
Duma derrota prevista
A resposta é um futuro
Cada dia uma conquista.
É não pensar no defeito
Nem excesso de ternura
Com as Amigas do Peito
A vida é mais segura.
É não pensar na razão
Ou razões que são várias
Das forças do coração
De todas as voluntárias.

José do Carmo Francisco

(Fotografia Visage Estúdio)

domingo, 14 de janeiro de 2018

Poema periférico para Rafael Carvalho


Poema periférico para Rafael Carvalho

Nesta viagem duma viola que não cansa
De ouvir porque tem em si dois corações
Há um tempo de teimosia e de esperança
Num espaço onde não chegam as razões.
«Origens» pois então só hoje eu ouvia
Um CD que há meses estava fechado
Eu desperto para um pleno de alegria
Dum som que vai comigo a todo o lado.
Som guardado do lado do coração
O lado mais sensível e mais sereno
Dum corpo que acende uma paixão
Sem ter as coordenadas no terreno.
Dois corações são símbolo e bandeira
Da música que nos dá a voz da terra
Capaz da emoção mais verdadeira
Que fica no poema em pé de guerra.


José do Carmo Francisco 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Pequena dissertação sobre um nome


Pequena dissertação sobre um nome

O teu primeiro nome tem, dentro de si, a força da Terra e a graça de Deus.
Ele é, sem dúvida, o nome feminino mais divulgado em todo o Ocidente. Tem a sua origem nas profundezas da língua hebraica mas não se ficou pela Bíblia e pelos Quatro Evangelhos. Está presente na Eneida de Virgílio, no teatro de Luigi Pirandello, nos romances de Tolstoi, nos contos de Pushkin e nas óperas de Mozart. Está junto à Terra e o seu som pronunciado resolve as hesitações nas encruzilhadas sombrias dos caminhos quotidianos. Digo o teu nome e tenho, no momento de o dizer, uma direcção e um sentido. Porque sinto, dentro do seu som, a força da Terra e a graça de Deus.
O teu segundo nome tem, dentro de si, a força da Água e da Natureza. Vem de uma origem duvidosa, envolta na neblina da lenda. Terá sido a primeira mulher, a que saiu do mar e deixou os homens da praia, entre atónitos e cheios de júbilo, aquela a quem chamaram mar yam - gota do mar. Como se essa mulher quisesse mostrar que só há vida na água porque vivemos com a água e morremos quando estamos dezassete dias longe da água. O mistério da vida e os milagres da existência têm uma raiz nessa mulher que saiu do mar e a quem os homens chamaram mar yam - gota do mar.
O teu nome, feito de dois nomes, é uma bandeira feliz, um estandarte de alegria, uma luz que não se apaga. O teu nome, feito de dois nomes, é o lugar ideal para ouvir o som da voz da terra e o murmúrio do mar, o apelo a ficar e o convite a todas as viagens.
O teu nome, feito de dois nomes, tem a dimensão sem medida dos sonhos e a música sem fim de todas as orquestras. O teu nome, feito de dois nomes, Ana Maria.

José do Carmo Francisco

(fotografia de Luísa Crespo) 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O gato de Fernanda – nove fragmentos


O gato de Fernanda – nove fragmentos

Atento, discreto, pacato. No perímetro da luz, olha a dona. O gato.

No lume aceso com a lenha do barracão antigo, as sombras são afastadas até ao sótão da infância. Aos gatos, sua paisagem, seu povoamento.

Que força empurra o gato frente ao sol no castanho-luz do telhado?

Teu gato a quem a chuva proíbe telhados e terraços. Veio do Egipto num navio de Veneza. No Cacém, sorri à dona portuguesa.

Terra trazida. Pequenas partículas de chuva nos limões e nas maçãs, invisíveis memórias de uma terra trazida. Minha terra, perto do teu gato.

Vejo intervalos de sol nos telhados do bairro, humidade permanente a respirar nas telhas como se o prédio fosse um corpo cansado, humano. O gato espreita.

Roubar alguns cabelos teus para fazer cordas de uma guitarra. Suave melodia, frente ao gato.

Há no teu olhar telhados infinitos, memória de paquetes brancos no rio e de sardinheiras vermelhas na varanda ao lado. Luz e calor. Gatos e sorrisos.

Há na tua voz um som que incorpora os sinos de Lisboa. De São Roque à Sé, da Conceição Velha à Madre de Deus. Toda a geografia de um afecto assim reproduzido, junto ao gato na janela.
  
José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)