segunda-feira, 23 de abril de 2018

Poema periférico para Isabel Gouveia



Poema periférico para Isabel Gouveia

Nem salada da Macedónia nem pratos de Creta
Nesta mesa onde apenas o cinismo se mascara
De harmonia e o medo se esconde no perfume.
Nada que não seja habitual e bem conhecido
Numa pátria iletrada que não lê e não conhece
Os exactos limites da sua ignorância já antiga.
Nesta mesa há um rebanho meio disperso
Com uma ovelha ronhosa que por aqui fugiu
E não responde ao cão nem ao pastor aflito.
Cinquenta e cinco anos depois do primeiro livro
O poeta insiste na modulação da voz do Mundo
E continua a tentar o poema velho e sempre novo.
Quase quatro mil anos depois o disco de argila
Continua a oração à Deusa-mãe daquele tempo
Sempre soletrada devagar e de fora para dentro.
Metáfora da vida, a viagem não tem fim conhecido
Sabe-se como começa mas nunca como termina
Como uma clássica guerra entre dois beligerantes.
Este poema é como uma oração a ligar de novo
Tudo aquilo que no Mundo a morte separou
No coração de quem ainda canta e não esquece.

José do Carmo Francisco     

(Óleo Charles Sheeler)

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Poema periférico para Francisco Távora



Poema periférico para Francisco Távora

O arco da Rua de São Bento já não está ali
Na Praça de Espanha ninguém repara
Há uma febre na pressa plural da cidade.
Nós ouvimos o que dizem as pedras
Na antropologia das gerações passadas
Que por aqui deixaram beijos e lágrimas.
Nós levamos no pálio a naveta do incenso
No Senhor dos Passos ou no Corpo de Deus
Entre os clarins os estandartes e as bandeiras.
Somos bisnetos de Montarroio de Mascarenhas
Nós sofremos de jornalite aguda, essa infecção
Para a qual não existe nem remédio ou vacina.
Somos nós afinal que contamos aos outros
As suas próprias raízes, histórias e peripécias
Mesmo que ninguém tenha reparado nisso.
Temos no nosso olhar um gabinete de estudos
Na voz temos uma grande sede de civilização
Numa cidade que há muito não pára de crescer.
Partimos sempre do pó para a posteridade
Temos um sonho impossível de concretizar
Parar uma hora o Sol sobre Lisboa ao meio-dia.
Só assim haveria  algum registo do brilho
Da luz forte das pedras e das ruas de Lisboa
Mas afinal o Sol não se demora na cidade.

José do Carmo Francisco   

(Fotografia de autor desconhecido)   

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Balada da Leituria na Rua D. Estefânia



Balada da Leituria na Rua D. Estefânia

Três anos a porta aberta
Em saudável teimosia
Aqui a hora é certa
O tempo é de Leituria.
«Transporte Sentimental»
Hospital, Pediatria
«Mau Tempo no Canal»
É tempo de João Garcia.
Que vinha da formatura
Num eléctrico onde se lia
Um destino de amargura
No romance que vivia.
Nasceu perto deste espaço
Minha filha Ana Maria
Livraria foi o nó e o laço
No livro que ela escrevia.
Num memorável lugar
De seu nome Leituria
É que apetece ficar
Assim não houvesse dia.
Como se a convenção
Compromisso de alegria
Fizesse mais forte a razão
De ser desta Livraria.

José do Carmo Francisco