quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A Factura de Conceição


A Factura de Conceição

Quando nasceste caiu todo o peso da Terra
Sobre os ombros já tão cansados da tua mãe
Venceu a vida sobre a morte em pé de guerra
Que tinha levado o teu pai para outro Além

Não pudeste sentir a força dos seus braços
Quando regressava a casa ao fim dos dias
Nem ele sorriu dos teus primeiros passos
Ou emendou as tímidas palavras que dizias

Agora tu devolves à tua mãe essa ternura
De há cinquenta anos mas em duplicado
É quase como quem paga hoje uma factura
Cujo vencimento nunca foi ultrapassado

Uma factura feita das lágrimas e dos sinais
Uma soma de muitos cuidados e de paixões
Corres por ela nos corredores dos Hospitais
Se pudesses eras tu que fazias as transfusões

José do Carmo Francisco           

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


(a Carlos Marques Querido)


Nasci em 1779 em Santa Catarina
Terra de gente muito dada a alcunhas
Minha mãe foi chamada a Abadessa
Gostava de andar de capas pretas
E tinha um porte altivo ao caminhar
Vinha gente de longe para me ouvir
Preguei sermões desde o ano de 1804
Na festa da padroeira Santa Catarina
Na Real Casa Pia de Lisboa em 1828
Na igreja dos Jerónimos ao Domingo
Durante sete anos andei sempre a fugir
Das tropas do general Jorge de Avillez
Que entraram em Bragança em 1834
Expulsaram a guarnição miguelista
E aclamaram de seguida D. Maria II
Avó Isabel Maria e avô Manuel Fialho
Procuraram esconder-me na Cumeira
Um amigo leal pôs quatro almofadas
Nas ferraduras dos cavalos dessa noite
Sem chamar a atenção de quem dormia
Pena eu ter vivido um tempo demarcado
Pedro no Mindelo, Miguel no Alentejo
O ódio enchia os caminhos e as valetas
Eu mesmo me escondi nuns matagais
Onde uma criança me viu desfalecido
Em Almagreira onde morri anos depois
Meu nome ficou em pedra na capela-mór
Destino singular de quem nasceu no dia
Da primeira pedra da Basílica da Estrela
E na vida escreveu palavras como pedras
Por debaixo do meu retrato na sacristia
Um bisneto do sacristão do Padre Agnelo
Lava galhetas na água da torneira prateada
Anos depois assinará um poema obscuro
A ligar de novo o que a morte separou.

José do Carmo Francisco