Segundo poema para Manuel Fernandes (1986)
Não lhe podem já tirar tudo
mas escondem-lhe o nome, os golos,
as vozes de quem, nas humildes casas
lhe grita o nome à volta do som dum rádio
nas tardes interrompidas dum quotidiano igual.
Não são homens – são sombras, escondem o rosto,
furtivos, fechados nos gabinetes, nos automóveis,
roubam os sonhos, decretam a morte civil
dum jogador assim perseguido sem porquê.
Não lhe podem já tirar tudo
ao menos ficam os troféus oficiais, as recordações,
as homenagens mais particulares
as fotografias dos jornais e os abraços
dos companheiros a correr do outro lado do campo.
Não são homens – são sinais dum castigo
que se perde no fundo do tempo, longe,
lá onde começou a primeira de todas as guerras
lá onde tábuas de morte se pregaram num coração.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de autor desconhecido)
As Emboscadas do Esquecimento
sexta-feira, 28 de junho de 2024
Segundo poema para Manuel Fernandes (1986)
terça-feira, 25 de junho de 2024
Novo poema nº 47 para Ana Isabel
Novo poema nº 47 para Ana Isabel
Há nos
algarismos desta idade um misto da infância que não se despede dos nove e da
maturidade dos quarenta; é uma mulher-menina
a olhar o Mundo no Outono de 2021.
Sobe um
rumor de alegria dos pratos da Balança que simboliza toda a ternura, todo o
sereno equilíbrio e todo o generoso estoicismo do signo que perdura e nunca se
despede.
Porque
primeiro chegou num sonho mas o seu tempo cola-se à verdade do quotidiano do
calendário na parede seja num talho seja numa oficina de automóveis; qualquer
lugar é sempre tempo de Balança.
José do
Carmo Francisco
(Óleo de Aron Wiesenfeld)
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Novo poema nº 46 para Ana Isabel
Novo poema nº 46 para Ana Isabel
O som de
fundo é uma música a metro, canções
já batidas ao longo de verões passadas e que hoje são apenas resultado de uma varinha mágica que tudo coloca na mesma
bitola; é música para ouvir nos elevadores dos prédios modernos.
Ninguém
repara no batuque vazio de música com melodia, há apenas ritmo e nada mais,
todos aqui procuram o usufruto da cerveja gelada, do ginger ale com limão, do copo de vinho branco muito fresco.
Porque até a brisa que se levanta do mar incita a não fazer nada, para além de ouvir o telemóvel que por acaso aqui nesta praia não tem propagação em todas as redes.
José do
Carmo Francisco
(Óleo de Claude Monet)
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Novo poema nº 45 para Ana Isabel
Novo poema nº 45 para Ana Isabel
Os cientistas são no fundo pessoas como as outras;
acreditam apenas naquilo que lhes convém e depois procuram acertar as
circunstâncias com as suas ideias particulares.
A ciência não tem nada de místico neste tempo de 2021
pois a situação flutua entre uma coisa e o seu contrário e para isso há sempre
uma resposta ou uma explicação.
Porque o importante é dormir descansado todos os dias, o
mesmo é dizer todas as noites depois de desligar a Internet que é o novo
relógio do tempo e do mundo.
José do Carmo Francisco
(Óleo de August Herbin)
terça-feira, 19 de março de 2024
Novo poema nº 44 para Ana Isabel
Novo poema nº 44 para
Ana Isabel
A bandeira vermelha é uma indicação para os banhistas mas o
nadador-salvador está sem trabalho; a gente da praia prefere o espaço
intermédio entre o oceano e a terra para brincar na água que sobejou da recente
maré cheia.
O café do motociclista é um combustível cultural no fim da
manhã, intervalo de viagens feitas e por fazer na máquina voadora a rasgar a
paisagem e a assustar o povoamento.
Porque tudo isto se inscreve nos dias das férias que, mesmo
perturbadas pela pandemia, não deixam de se impor no calendário de quem aqui se
fixou de modo provisório.
(Fotografia de Luís Eme - Algarve)
domingo, 18 de fevereiro de 2024
Novo poema nº 43 para Ana Isabel
Novo poema nº 43 para Ana
Isabel
Um dia Jesus Correia
(1924-2003) mostrou-me uma fotografia da equipa dos cinco violinos ao lado da criança prodígio Pierino Gamba de visita
a Portugal em 1947.
Hoje vi no Youtube o vídeo com
um menino russo com muito estilo a tocar como
gente grande o Concerto nº 3 de Mozart para piano e orquestra de câmara.
Porque aqui é tudo uma questão
de escala e de dimensão. No caso deste menino eu tenho todas as dúvidas sobre a duração do
efeito surpresa; a única coisa assegurada é o gozo pessoal e íntimo de cada
concerto.
domingo, 21 de janeiro de 2024
Novo poema nº 42 para Ana Isabel
Novo poema nº 42 para Ana Isabel
Eram frugais
os cavaleiros de Nuno Álvares Pereira a caminho de Monchique; davam de beber
aos cavalos na ribeira de São Teotónio, a seguir rezavam e só depois comiam
pouco e devagar.
É por tudo
isso que ainda hoje tanto a imagem e como o altar antigo permanecem e continuam
no pequeno Santuário do Monte da Orada.
Porque nem tudo se perde na erosão do tempo que, sempre e todos os dias, trabalha para o lado do esquecimento.
José do
Carmo Francisco
(Fotografia de autor desconhecido)
sábado, 23 de dezembro de 2023
Novo poema nº 41 para Ana Isabel
Novo poema nº 41 para Ana Isabel
Por causa da pandemia o meu
livro No tempo de Jesus não havia fotografias não chegou a ser entregue à
professora Helena na Escola do Telhal e foi pena pois até pedi à editora uma
capa especial para o livro ser manuseado por crianças.
Em teoria e na minha
expectativa, poderia ter sido um encontro feliz entre um pequeno livro de
cinquenta crónicas, a professora e os colegas do meu neto Pedro.
Porque tudo na vida é um
mistério e nos cruzamentos do trânsito do acaso foram outras as prioridades no
mês de Março de 2020.
José do Carmo Francisco
(Óleo de James Sand)
quarta-feira, 22 de novembro de 2023
Novo poema nº 40 para Ana Isabel
Novo poema nº 40 para Ana Isabel
Há sonhos
que se perdem dentro das ruas escuras e no barulho do mar; talvez sejam mesmo
pesadelos porque trazem no seu bojo uma angústia pesada.
A cidade tem
a dimensão da narrativa, desenha-se como uma novela com as suas figuras, os
seus interesses e as suas expectativas.
Porque tudo
se revela quando o vento empurra a neblina para dentro do mar e os telhados
começam a brilhar com o sol que se demora e faz daquela superfície uma espécie
de espelho.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de Luís Eme - Sesimbra)
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Novo poema nº 39 para Ana Isabel
Novo poema nº 39 para Ana Isabel
Ao ver o
jurado do Prémio Literário a chá e
torradas no melhor restaurante da cidade, o vereador da cultura
prometeu-lhe logo assistência médica, dormida num bom hotel e até o pagamento
do funeral.
Outra
vereadora da cultura afirmou não fazer ideia de quem é Júlio César Machado,
provando dirigir aquela área como podia estar nos Resíduos Sólidos, Espaços
Verdes, Turismo ou Desporto e Acção Escolar.
Porque no
sistema cultural perverso que é o nosso o que conta é encaixar os candidatos;
não interessa onde nem como porque o importante é ficarem colocados.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de Luís Eme)