quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Os Olhos de Cristina


Os olhos de Cristina

Inquietos, sacudidos pelo bulício da cidade antiga, os olhos de Cristina vieram da cidade nova e são dois faróis a avisarem a navegação das próximas tempestades quotidianas. Cristina saiu da estação do Metro da Baixa-Chiado e atravessou a muralha mandada construir por D. Fernando para beber um café e comer um bolo. Vista ao longe, diluída na pressa dos semáforos, Cristina não é apenas uma mulher. É também a imagem de uma cidade. Cidade habitada por afectos, cruzada por ruas de sonhos, por praças projectadas na vontade de ser feliz. Se Lisboa é uma cidade-mulher, luminosa e pronta a ser conquistada todas as manhãs, Cristina é uma mulher-cidade e os seus olhos, ora inquietos ora serenos, são as portas dessa cidade luminosa mas apenas existente nas metáforas e nas imagens. À direita, o Rio Tejo dá nos olhos de Cristina a ilusão de estar colocado nos últimos telhados da Rua do Alecrim. («Alecrim, alecrim aos molhos, por causa de ti choram os meus olhos» – diz a cantiga popular. Adiante.) Os cacilheiros, repletos de pessoas e de viaturas parecem desaguar num cais insólito feito de telhas antigas e de gaivotas ruidosas. Para o fim da tarde, no regresso a casa na cidade nova, os olhos de Cristina estão serenos pelo cansaço e pela presença luminosa de Raquel, sua filha. Se de manhã se juntou a cidade-mulher (Lisboa) à mulher-cidade (Cristina) então de tarde vemos que a mistura feliz é da mulher-menina (Cristina) com a menina-mulher (Raquel). Os olhos de Cristina, motivo do texto, são uma espécie de selo branco que vai certificar o momento feliz de encontro e de plenitude que esta crónica procura representar. Ou seja: dar um testemunho feito de palavras resgatadas à pressa da cidade.     

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Balada para o teu pesa-papéis


Balada para o teu pesa-papéis

Não posso dizer, como no famoso poema que a pedra estava «no meio do caminho» porque ela estava, de facto, à beira do caminho. Era um caminho de cabras e de pastores, algures entre Proença-a-Nova e Oleiros, numa tarde de sábado a arrastar os meus sapatos voltados para o pó e os meus pensamentos voltados para ti.
Sei que tens uma secretária onde um carteiro pontual deposita paulatinamente envelopes com toda a espécie de documentos: facturas, recibos, ofícios, extractos de conta, papéis diversos. Então lembrei-me de ti e da tua secretária sempre povoada de papéis. Urge domesticar e organizar esses papéis contra o vento da Serra de Sintra que aparece quando tu abres a janela lateral para um pouco de sol ou de fresco.
Esta é uma pedra com milhares (ou talvez milhões) de anos, tem no seu dorso infinitas horas de sol e tantos hectolitros de chuva que ninguém pode medir ou, sequer, calcular. Esta é uma pedra que transporta consigo o cheiro da terra, o peso do seu silêncio, a cor que fielmente reproduz para nós a sua origem a partir da erosão de uma outra pedra. Uma pedra muito anterior a nós. Grande, quieta e inicial.
Esta é uma pedra especial. Eu trouxe-a para a tua mão a conduzir no tampo da secretária como uma peça de xadrez, como um retrato, como um pesa-papéis.

Na verdade trata-se de algo mais do que um simples pesa-papéis. Trata-se de um retrato da terra. Nele sentirás o frio e o calor, o sol e a chuva, o pó do vento e a água das valetas. Tudo isto foi concentrado nesta pequena pedra por mim trazida de um caminho de cabras e de pastores, no meio dos pinheiros, algures entre Proença-a-Nova e Oleiros.  

José do Carmo Francisco
          
(Óleo de Manuel Garcia Rodriguez)