sábado, 16 de junho de 2012

o corvo de Papillons Walk



Cai aqui uma chuva macia e certa
Na estrada do domingo de manhã.
Teimoso e obstinado, o corvo corre
Nos intervalos dos poucos automóveis.
Será o resto de um pão preso ao asfalto
Deixado cair por uma criança indolente.
Mal surge o som e a imagem na curva
De Morden Road, o corvo salta da rua.
Nada sabemos deste corvo capaz de viver
Dentro do tempo de duas guerras mundiais.
Em 1914 terá fugido ali para Greenwich
Matando a fome na cantina da Academia.
Em 1939 escondeu-se no Rio Quaggy
Onde não chegavam as bombas alemãs.
O corvo de Papillons Walk salta
Por cada automóvel que aqui passa.
Nada sabe da chuva desta manhã
Nem dos cânticos da igreja ao lado.
Sem idade nem memória, só futuro
Há nele uma pujante razão de ser.
Não se distrai com os esquilos
Que cruzam os jardins das moradias.
Não se concentra nas crianças da rua
Nas suas roupas, gritos e abóboras.
Não se envolve no trânsito da rua
E no som do guarda-lamas nas lombas.
Em Papillons Walk o corvo come
Um pão que não seca nem termina.

José do Carmo Francisco

terça-feira, 12 de junho de 2012

Um poema de Londres


As casas de Blackheath Park

São todas de madeira e de vidro
As casas de Blackheath Park
A outra metade é feita de tijolos
Tristes porque são todos iguais
Na sua tão repetida monotonia

À volta da avenida fica o arvoredo
Antigo como as casas dos guardas
Lembra um velho tempo de quintas
Com cavalos e carroças no mercado
Hoje só recordado aos domingos

Esquilos nos ramos, corvos na relva
De noite raposas fogem assustadas
Dos poucos táxis a circular na rua
Na escuridão fria da noite inglesa 
À hora dos comboios mais raros

Envolvido nas rotinas das escolas
Levo na mão o meu neto de manhã
E vou buscá-lo perto do meio-dia
Pego na pasta azul com o seu nome
E levo o saco da fruta que ele espera

Todos os dias trocam o livro da mala
São elefantes, borboletas e ovelhas
Entram na floresta que eu lhe conto
E tremem de medo dos monstros
Como eu tremo de medo da doença

São todas de madeira e de vidro
As casas de Blackheath Park
Frágeis perante a neve a chegar
Tal como eu frente ao pâncreas
Que de súbito há-de ficar cansado

Tudo é intenso e frágil nos dedos
Maneira de eu dizer adeus à vida
Todos os momentos são preciosos
Para que o meu neto me lembre
E não se esqueça de me recordar  

José do Carmo Francisco           

Iniciais


"Iniciais" marcou o começo da minha vida literária, em 1980.
É uma boa forma de começar a minha caminhada a solo na blogosfera, em 2012, com o poema J.C.F...

Um grande medo percorre-te o tempo desde criança
Passaste ao lado da guerra mas sempre a medo
Sei que odeias as férias, a praia e o sol
Sei que preferias viver sempre longe do prazer

A ostentação da saúde deixa-te indiferente
Mas perdes a manhã num autocarro de Lisboa
Por causa duma mulher velha que chora
Abraçada a lágrimas e a sacos de plástico

Perdes muitas vezes tempo com coisas inúteis
E vês a tarde encher-se de papeis no cesto
Atravessas os corredores do medo pensas na morte
E o futuro pode pode ser essa palavra no poema