sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Quase fado para Rodrigo


Quase fado para Rodrigo

O Cais do Sodré também
Tem um relógio diferente
Onde as horas de ninguém
São tempo de toda a gente
Onde cheques que trazia
Do Banco de Portugal
Vinham antes do meio-dia
Pagar fretes de sisal
Onde eu comprei gravatas
A um chinês tão parado
Que a palavra baratas
É um som mal soletrado
Onde facturas consulares
Mais os selos das Finanças
Ocupam os seus lugares
No balcão das lembranças
Onde as vozes das varinas
Tinham o som da guitarra
Ao lado vinham ardinas
E os Pilotos da Barra
Onde escritórios, balcões
Agentes de navegação
São hoje recordações
No poema que é canção

José do Carmo Francisco 

(fotografia de autor desconhecido)    

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Entre Coruche e Montemor


Entre Coruche e Montemor

Minha musa alentejana
Minha primeira deidade
Tens no olhar de cigana
A força de uma verdade
Ciências, letras e artes
A todas tu vais reger
Tudo divides em partes
Na tua voz de mulher
Minha musa alentejana
A saudade é pesadelo
Passaste na caravana
No teu cavalo murzelo
É mais que cavalo preto
Porque tem cor de amora
Visto em ângulo recto
A trote pela estrada fora
Minha musa alentejana
Carcereira destes versos
Na tua voz tão soberana
Juntas todos os dispersos
Guarda da minha prisão
Tens a chave da cadeia
E no meio da multidão
És a guia que não receia
Minha musa alentejana
A mais linda cabaneira
Abandonas a cabana
Logo à hora primeira
Estradas, veredas, atalhos
Não te esgotam o caminho
É cabo dos meus trabalhos
Estar perto, não ser vizinho
Minha musa alentejana
Eu continuo a procurar
O rasto duma carripana
Que te levou devagar
Quero ser o condutor
Para saber o trajecto
Entre o lugar do amor
E a planície do afecto
Minha musa alentejana
Estás no fim da estrada
Já passou uma semana
E não acabei a balada
Parti à tua procura
E continuo vagabundo
Cantei mas a amargura
É maior do que o Mundo     

José do Carmo Francisco

(Óleo de Jesus de Perceval)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Carta a um menino pastor


Carta a um menino pastor

As ovelhas são mansas e os cães obedientes
Neste rebanho que te coube a ti guardar
Da tua flauta saem sempre sons diferentes
E as ovelhas não se afastam desse teu lugar

Na planície sem limites por onde tu passas
Ao tomar conta dos vários rebanhos divinos
Há um limite e a partir dele as desgraças
Apagam-se nos olhos de todos os meninos

Afinal menino é o que continuas tu a ser
Na maneira como falas e como caminhas
Na alegria quando vais lá longe recolher
As ovelhas afastadas distantes e sozinhas

Não sei se sabes mas andamos estranhos
Desde que partiste para a tua nova função
Oxalá consigas cuidar dos teus rebanhos
Como nós vamos cuidar da tua recordação      


José do Carmo Francisco

(Fotografia da autoria de Aníbal Sequeira)