sábado, 23 de setembro de 2017

Poema periférico para Armando Silva Carvalho


Poema periférico para Armando Silva Carvalho

Os campinos agora usam telemóvel
E jeeps velozes nas lezírias e charnecas
Onde perseguem touros tresmalhados.
Aqueles rapazes do balcão dessa tasca
Onde se vendia o seu tabaco, fugiram
E já não são rapazes nem falam assim.
Hoje os treinadores não se discutem
Nem as tácticas para vencer jogos
Por causa das apostas dos chineses.
Já não se diz o prélio nem o ferrolho
Apenas fio de jogo e linhas de passe
Por onde circula o esférico da alma.
Esperam de nós domingos da verdade
Vencer o adversário entre serra e mar
Para assim trocar a morte pela vida.

José do Carmo Francisco 

(Fotografia de autor desconhecido)

sábado, 16 de setembro de 2017

Poema Mais periférico



 Poema mais periférico     (para Fernando Venâncio)

Uma colheita perdida de palavras
Em «Os esquemas de Fradique»
Na prateleira dum alfarrabista.
No país que não lê os seus autores
Não admira este gesto das élites
Quando o livro fica fora do circuito.
Mas alguém o compra para o ler
Dezoito nos depois da dedicatória
Num Mundo que não pára de mudar. 
Periférico, marginal, sem as atenções
O livro está por fim no seu lugar
De onde parece nunca ter saído.

José do Carmo Francisco

(Ilustração de Walter Humphrey)

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Tempestade de Verão


Tempestade de Verão

Quem diria, quem diria
Quarenta anos depois
Que a balada deste dia
Era feita entre nós dois.
Que na casa da costura
Com dedais em colecção
Uma nuvem de amargura
Traz tempestade de Verão.
Que coração naufragado
Sem direito a cemitério
Vai comigo a todo o lado
Entre a mágoa e o mistério.
Que na areia desta praia
Houve um golpe de calor
E traz no desenho da saia
Meu olhar de pescador.
Quem diria, quem diria
O mundo faz a fronteira
Entre esta luz da Abadia
E toda a Praia da Vieira.
Que Charneca é aridez
E Lezíria é abundância
O teu Bairro português
Fica longe da distância.
É uma casa, é um casal
O poço de água tão fria
Perto da estrada real
Quem diria, quem diria.
Nos livros que eu escrevia
E em poemas de nada
Uma teimosa alegria
Nasce cada madrugada.

José do Carmo Francisco      

(Óleo de Philippe Jacquet)

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Balada do cabo miliciano de 1972


Balada do cabo miliciano de 1972

Segunda incorporação
Setenta e dois era o ano
Um frio no coração
Dum cabo miliciano.
Era nas Linhas de Torres
Que a Escola do Lumiar
Ensinava outros horrores
Que não morrer ou matar.
Na Rua dos Mercadores
E na Rua do Raimundo
A escola sem professores
Era o tamanho do Mundo.
Num Hospital Militar
Diligência permanente
Nunca me viram chorar
À frente de muita gente.
Noventa escudos por mês
Era o pré duma trapaça
O medo valia por três
Na presumida desgraça.
Duma embocada tardia
Que podia ser matinal
E a família não sabia
Mas pagava o funeral.
Era assim que eu morria
Ou de uma outra maneira
Não teria ido a Leiria
Nem à Praia da Vieira.
Naufragou nesse Verão
Minha alma de soldado
Que colada ao coração
Foi com ele a todo o lado.
Não vi cruzes nem choro
Pelo anónimo do mar
Os homens vão para o coro
Ficam bem longe do altar.
Se morresse nesse dia
Quarenta anos depois
Nenhum de nós quem diria
Lembrava o nome dos dois.
O tempo passou depressa
Na mais negra geografia
Quando perdia a cabeça
E aos poucos eu morria.
Olho o passado defronte
Num balanço negativo
A linha do horizonte
Não me garante se vivo.
Como um filme ao contrário
O meu tempo se revela
A folha do calendário
E a sombra na janela.
Dessa casa da costura
Entre a eira e a estrada
Num registo de secura
Viagem do zero ao nada.

José do Carmo Francisco     

(Fotografia do autor)