domingo, 20 de dezembro de 2020

Poema autógrafo para Ana Santos Barros

 



Poema autógrafo para Ana Santos Barros
 
Partimos sempre de fotografias
Mesmo que não haja películas
Ou os negativos para revelar.
Às vezes é uma memória feliz
Encontro no balcão dum Banco
Almoço no refeitório das Caixas.
Neste caso seria Jardim da Estrela
Tudo nos quatro a preto e banco
E uma das meninas está de vestido.
Terá sido em 1983 e está tudo igual
No Jardim, nas ruas e nas sombras
Que envolvem as legendas do filme.
Será isso afinal: somos só memória
Porque o nosso passado não passou
E está à porta do Jardim da Estrela.
 
José do Carmo Francisco 
 
(Fotografia de autor desconhecido)

domingo, 22 de novembro de 2020

Meditação breve para Agadir


 

Meditação breve para Agadir
 
Treme a terra em Agadir
O passado está presente
Ninguém ali podia fugir
Foi tudo tão de repente.
 
E na montra da livraria
Livro a preço inesperado
Quem diria, quem diria
Que era este o resultado.
 
José do Carmo Francisco
 

(Óleo de Harold Knight)


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Alexei Bueno nas Escadinhas do Duque


Alexei Bueno nas Escadinhas do Duque
 
Tinha que ser escritor este bandeirante
Nome herói de romance em homenagem
Assim a Rússia já não fica tão distante
Numa vida que é também uma viagem
 
Nas Escadinhas do Duque é rei à mesa
Dá lições de poesia em breve seminário
Entre cerveja e amendoim nasce a beleza
Da Poesia que o Mundo vê ao contrário
 
Somos poucos aqui um grupo acantonado
Na mesa posta por D. Rosa na sexta-feira
Viajamos num bacalhau bem temperado
Pelo azeite tão puro e leve duma oliveira
 
No Camões a mulher feia vende cocada
Desesperam por um visto os brasileiros
Que pena a vida não poder ficar parada
Aqui onde os poemas nascem inteiros
 
José do Carmo Francisco 

(Fotografia de autor desconhecido)      


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Balada da Rua de Baixo

 



Balada da Rua de Baixo
 
Rua de Baixo, meu mundo
Onde eu regresso cansado
Quando o olhar é profundo
Já andou por todo o lado
 
São casas sem ninguém
De famílias desligadas
Não se ouve a voz da mãe
Na névoa das madrugadas
 
Meu berço e minha escola
Minha casa e minha igreja
O amor não pede esmola
Nas esquinas da inveja
 
Minha paisagem saudosa
Povoada por destroços
Duma sede mais gasosa
Que a água destes poços
 
Filarmónica formada
Manhã cheia de brancura
Há festa não tarda nada
Na rua desta amargura
 
Sete ondas repetidas
São sete beijos do mar
Na areia das nossas vidas
Já só podemos cantar
 
Pode-se cantar um fado
Feito só de melodia
Um homem fica calado
Ao ver a fotografia
 
Minha rua inicial
A vida, anos primeiros
Onde passou triunfal
A paixão dos baleeiros
 
José do Carmo Francisco

(Óleo de  Frederic Bazille)
 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Namorar uma cor: verde


Namorar uma cor: verde

Namorar uma cor…

São muito antigas as minhas ligações ao verde. A paixão dessa cor desde sempre escolhida como símbolo, como referência, como preferência, como fixação. Tal como na liturgia da Igreja, o verde é o sinal da renovação, da Primavera, da vida que se multiplica.

Namorar uma cor…

Como se namora uma pessoa, se marcam encontros, se sai à noite, se é e se faz tudo para se ser fiel.

Namorar uma cor…

Desde 1966 que, em Lisboa, mantenho, este namoro. Marco encontros de quinze em quinze dias no relvado do Estádio José Alvalade. Saio à noite nos jogos das competições europeias. Procuro ser fiel ao verde sem hesitações nem desânimos. Festejo as vitórias com muita alegria mas faço das derrotas uma reserva moral para partir ao encontro de novas vitórias. Apenas isso. Nem um sonho. Nem um drama.

Namorar uma cor…

Hoje como ontem gosto de ver o relvado sem ninguém. De vez em quando, sempre no fim da tarde, olho-o no grande silêncio. Vejo nele a sementeira das grandes emoções, dos grandes encontros, dos resultados felizes.

Hoje como ontem o verde é a direcção da Primavera, a presença da Esperança, o sentido da Vida a renascer. Sempre. Para sempre.

(Nota final – Este texto integra o livro «Futebol – iluminuras e textos consagrados» de Julho de 2004 (Editora Sete Caminhos) e foi recuperado em 7 de Outubro de 2020)        

[Crónicas do Tejo 261]

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Autor Desconhecido)


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Balada para Ruslam Botiev


Balada para Ruslam Botiev
 
Sempre que estava frio
Meio da correspondência
Tinha que ir ao Val do Rio
O patrão tinha paciência.
Pode ser o Ricardo Reis
Ou então Alberto Caeiro
Três que podem ser seis
Álvaro de Campos inteiro.
Além do próprio Pessoa
Entre mortos e feridos
Tem no mapa de Lisboa
Os sonhos interrompidos.
Todo o som que ele ouvia
No lugar do nascimento
São as sílabas da alegria
No poema do momento.
Poderia ser uma canção
Ou então uma filosofia
E continua a ter razão
Na porta da Tabacaria.
Uma Mensagem escrita
Para o Prémio Literário
E afinal está de visita
O Mundo é ao contrário.
Guardador de Rebanhos
Também fica no retrato
Há caminhos estranhos
Onde não cabe o contrato.
Este gato fica de fora
Do campo do retratista
Mas miou por uma hora
Para que ninguém resista.
No calendário de parede
Com três, número divino
Abel Pereira mata a sede
De quem decifra o destino.
 
José do Carmo Francisco
 
(Desenho de Ruslam Botiev)


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Teu nome Luísa

Teu nome Luísa


(a Luísa Amaro sob tema musical de B´Leza)


Teu nome Luísa

Tem gota de Mar

E já não precisa

Que eu vá cantar.

Mas por outro lado

Tem força da Terra

E eu maravilhado

Tudo nome encerra.


Teu nome no som

Da música eterna

Tem condão e dom

De ser pós-moderna.

Já eu fico a dizer

Luísa e de novo

Nome de mulher

Coração do Povo.


José do Carmo Francisco


(Óleo de Gino Severini)


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Poema para José Pereira, o pássaro azul



Poema para José Pereira, o pássaro azul

«E ainda me devem seis contos»
Ouvi eu esta sua frase magoada
A única vez que consigo pude falar.
Uma resposta à  sua difícil saída
Foi para o Beira-Mar, o de Aveiro
Lá pelos idos de sessenta e sete.
Mas nada acontece por acaso aqui
Mário Duarte foi o primeiro keeper
Da equipa de cruz de Cristo em 1919.
Há quem teime em ver o seu perfil
Todas as manhãs frente ao Mosteiro
E de costas para o Centro Cultural.
Tudo isto tem a sua razão de ser
No país de doutores e engenheiros
E de mortos que falam em Belém.
Dizem eles que morreu há um ano
Mas eu não acredito em ninguém
Só quando lhe pagarem seis contos.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

As mãos da mulher-menina na igreja de Ruslam Botiev



As mãos da mulher-menina na igreja de Ruslam Botiev

As mãos da mulher-menina são um búzio no qual se ouve o rumor antigo da cidade, seus pregões do passado (Fava rica!, Viva da Costa!, Ferro velho!), seus apitos de sinaleiro e campaínhas de eléctrico com atrelado no trânsito febril, sua espuma branca no estuário do Rio Tejo atrás dos velozes rebocadores.  
Há nestas mãos um calor inesperado, talvez resíduo do primeiro fogo da manhã, o que acendeu o dia, aqueceu o leite e o pão depois de secar as lágrimas de quem chegou exausto à manhã, cansado dos pesadelos da noite e das suas peripécias. Há nestas mãos um refúgio, um reduto, uma mina. As memórias, os sentimentos, a água fresca, tudo se conjuga para apaziguar o espírito inquieto pelas dúvidas do quotidiano hostil. Há nestas mãos um separador entre paisagem e povoamento, entre terra e mar, entre luz e escuridão. Aqui nasce a ternura, sua humidade e sua força por vezes inesperada. Há nestas mãos o som de um clarim, o ritmo de um tambor, uma ordem unida a convocar os dispersos elementos sentimentais para um piquete de bisonhos sapadores da alegria teimosa que, mesmo nos momentos mais cinzentos, empurra o nosso tempo interior para as praças onde a cidade reconhece e proclama o seu alfabeto de luz e a sua gramática de alegria.
As mãos da mulher-menina juntam-se ao fim do dia quando se ouve o sino de uma igreja perto do Cais dos Soldados as convocar as palavras mais obscuras para uma oração que junta de novo tudo o que a morte separou.   

[Crónicas do Tejo 229]

José do Carmo Francisco

(Aguarela de Ruslam Botiev)   

domingo, 16 de agosto de 2020

Balada do Vale de Janelas



Balada do Vale de Janelas

                                   (poema autógrafo para Luís Santos)

O parque de luxo em frente
Automóveis de cilindrada
Com lombas já é diferente
Sendo rua não é a estrada.
Tempo ideal do desporto
Com carrinhos e relvado
Viatura em ponto morto
Frente ao vale encantado.
E no sossego da neblina
Não há tempo ou demoras
Cada burgo, uma piscina
Não se dá por estas horas.
No som da rebentação
O ritmo até ganha asas
No contrário do Verão
Vale o calor das brasas.
Sabendo que tudo alcança
Seu estatuto adequado
A corrida duma criança
Vai chegar a todo o lado.
Na varanda deste café
Onde espaço não confina
Esta balada é o que é
Continua e não termina.

José do Carmo Francisco 

(Óleo de Heinrich Vogeler)   

sábado, 1 de agosto de 2020

Anabela na Coelho da Rocha



Anabela na Coelho da Rocha

Uma lisboeta exilada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Tem saudades verdadeiras
Dos lugares e capelistas
Onde havia sardinheiras
E se compravam revistas

Plateia, Século Ilustrado
Flama, Crónica Feminina
Os homens iam para o lado
As mulheres junto à esquina

Onde grupos de varinas
Vendiam o peixe na rua
E no pó das oficinas
Dormia a sombra da lua

Onde ainda havia carroças
Petróleo, azeite, verduras
As batas brancas das moças
Eram luz das ruas escuras

Onde o vinho e o carvão
Se vendiam numa taberna
E os copos desse balcão
Brilhavam pela lanterna

Onde havia barbearias
E retratos pendurados
Falavam todos os dias
De jogadores admirados

Onde à noite os ardinas
Trazem notícias na mão
As palavras pequeninas
Não chegam ao coração

Eléctricos de atrelado
Com bilhetes de operário
Na paragem do passado
A vida anda ao contrário

Ninguém toca campainha
A dar o sinal de partida
No assento de palhinha
Está sentada a nossa vida

É uma vida misteriosa
Que fica por desvendar
E a poesia tão teimosa
Não desiste de cantar

Uma lisboeta isolada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Casa Fernando Pessoa, 30-11-2006

            José do Carmo Francisco             

(Fotografia de J. C. Alvarez)

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater



Lamentação e pranto de Jill McBain em Sweetwater

(para Cláudia Cardinale em Aconteceu no Oeste)

Não tive tempo para nada.
A trompete ajudou com as suas notas sincopadas a simular os meus soluços que ninguém ouviu. Nunca tinha visto um banquete de morte. Lá longe, em New Orleans, as mesas servem sempre para as refeições e para a alegria dos encontros. Aqui de nada serviu a recomendação de Brett à filha para cortar as fatias do pão muito maiores que o habitual.
Não tive tempo para nada.
Nem para as lágrimas que são a água salgada da revolta perante a injustiça da morte. Nem para perceber quem mandou matar uma família inteira. Nem para perceber porquê. Ainda era cedo. Sei agora a diferença entre a água doce do meu poço e o sal da água azul do Oceano Pacifico que está num quadro da parede da carruagem de luxo de Mr. Morton.
Não tive tempo para nada.
Afinal ainda é cedo para saber de um homem, moreno e triste, capaz de, como quem cumpre uma sentença, matar vários assassinos depois de tocar uma melodia vagarosa numa harmónica velha, presa ao pescoço por uma corda muito mais pequena e estreita do que a outra, a utilizada para enforcar o seu irmão mais velho numa infância já distante.
Não tive tempo para nada.
Aos poucos percebi como é possível construir um sonho em miniatura. A madeira está paga, os barris cheios de pregos estão à espera. É só contar os passos e marcar o perímetro das primeiras casas de Sweetwater. A Estação e a Igreja, o Banco e o Hotel, as primeiras lojas. O sonho de Brett McBain não pode ficar adiado. A roldana do poço espera por mim. Os primeiros operários do caminho-de-ferro acabam de chegar e estão mortos de sede.

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de autor desconhecido)
          

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento



A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento

Não vejo nesta Sé a caixa com os ossos do meu bispo
Nem hoje nem em Agosto de 1961 quando aqui rezei
Pelos exames de admissão ao Liceu e Escola Técnica

Estranhei os sinos da Sé e os galos madrugadores
Mais que o colchão de palha tão igual ao do quartel
Que iria ter anos mais tarde nas Caldas da Rainha

Comecemos: nasci numa terra de escritores esquecidos
José António da Silva Rebelo não é só bispo de Bragança
Também é autor dum livro hoje na Biblioteca da Ajuda

Lembranças sobre a felicidade de Portugal foi escrito
No seu tempo de administrador da Casa Pia de Lisboa
E foi sem surpresa dedicado a D. Miguel no ano de 1828

Faustino do Rego em 1525 escreve sobre Ordem de Cister
E Manuel de Moraes sobre Francisco de Assis em 1735
Perdendo-se de seguida nas emboscadas do esquecimento

Na sacristia de Santa Catarina existe um retrato do bispo
Repousam os seus ossos na capela-mór de Almagreira
Onde terá morrido em 1846 à beira de completar 67 anos

Tudo começou no castelo de Leiria, no rei Afonso IV
Por isso a torre da Sé assenta numa sua velha porta
De onde se faz ouvir o som feliz dos seus oito sinos
  
Foi desviado o rio que passava dentro do claustro da Sé
Onde os cónegos pescavam os peixes do seu escabeche
E hoje há descargas da ganância das pecuárias sinistras

O pau-santo da sacristia veio de Belém do Pará, Brasil
Nos barcos vagarosos que levavam cantores de ópera
Músicos e guarda-roupa dos romances ainda por cantar

Há hoje a força do silêncio do Grande Órgão de 1997
Para dar mais realce aos painéis de Simão Rodrigues
E à sua Assunção de Nossa Senhora, nossa padroeira

E minha padroeira mesmo sem ter sido baptizado
Na capela do baptistério da nave lateral esquerda
Nem ter lavado as galhetas no fontanário da sacristia

Estas naves e capela são meu lugar de oração teimosa
Que a morte dos nossos parentes sabe sempre a injustiça
Ou antecipado ajuste de contas entre pecado e perdão                    

Em 1961 no Verão já se falava aqui nas três guerras
E grupos de mães procuravam favores de sargentos
Numas oficinas de Alverca, lá mais perto de Lisboa

Passei nos dois exames mas já estava no Comércio
Ouvi muitas vezes murmurar como quem censura
Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!

A luz de Deus entra nos vitrais, forte, justa, solene
Hoje como já em 1570 as naves gritam às capelas
O fervor da futura sagração quatro anos mais tarde

Entre as pedras e os sinais há um tempo que resiste
Forma-se uma procissão solene à porta da sacristia
O meu bispo vence as emboscadas do esquecimento

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Autor Desconhecido)         

terça-feira, 30 de junho de 2020

Balada para Ana da Guia no Casal da Cabrita



Balada para Ana da Guia no Casal da Cabrita

Senhora Ana da Guia
Lá no Casal da Cabrita
Guarde-me este dia
Venho fazer-lhe visita.
Com o pai veio da Vieira
Vendia peixe nas terras
Mas a morte foi certeira
Vieram outras guerras.
Vou também na carroça
Vender o queijo e o pão
Em Tomar a terra é nossa
Só na Golegã é que não.
Na noite de sexta-feira
Da ceia até à madrugada
Não havia outra maneira
Estava atenta à fornada.
Dos onze filhos nascidos
Com seis sobreviventes
Cinco romances perdidos
Nas lágrimas diferentes.
Sua força de vontade
Para não desanimar
Deixa grande saudade
Mistura a terra e o mar. 

José do Carmo Francisco

(Óleo de Antal Neogrady)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Cemistério



Cemistério

Aqui se fixam as diferenças
até na morte como mercadoria.

Dinheiro em pedra nos jazigos;
campas pobres só com a terra
– por detrás dos muros, prédios,
vozes, gente que faz barulho
e estende roupa para este sol.

Pode chegar-se aqui de “táxi”
ou também de autocarro.

Nas flores mais secas
se vai perdendo a luz.
Outras memórias, palavras,
São o lixo deste dia.

Um tempo para dizer este tempo
quando o relógio se cansa
e perde os ponteiros do coração,
um tempo para lembrar
as flores tão verdadeiras
num frasco de tofina bem lavado.

Outras facturas, outro dinheiro
se perdem nesta morte a prazo.

Morre-se também na tarde,
perguntando sempre à morte
qual a diferença de luz
entre o mármore e a terra.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Henri Matisse)
  

terça-feira, 9 de junho de 2020

Matéria reservada



Matéria reservada

                                                                 (para o Nicolau Saião)

Sombras até onde se deixa de ver, pesos herdados duma dor antiga, vozes leves que estão por decifrar, enfim tudo aquilo que, ano após ano, se acumula numa mesa à espera do adequado tratamento sentimental.
Os mais agudos esforços para não enlouquecer, as dúvidas mais dolorosas sobre o que há vinte anos era verdade reconhecida como tal, os fantasmas mais particulares, aquilo que se transporta com a gordura, a miopia, o quotidiano esforço para ganhar (ou perder) o pão e a vida.
Não há nem pode haver ministérios que disso tratem. Nem sequer ao menos haverá quem possa bem classificar. E se houvesse pasta, direcção geral ou gabinete que dela tratassem, um só autocolante ou carimbo lhe poderia servir – Matéria Reservada.   

José do Carmo Francisco

(Óleo de Edward Hooper)

domingo, 31 de maio de 2020

Balada das três meninas



Balada das três meninas

Vão cerejas numa caixa
Os limões as tangerinas
Vai a luz da Beira Baixa
O perfil das três meninas.
Vegetal mineral humano
São três mundos numa rede
Vamos já a meio do ano
Calendário na parede.
Nas razões mais obscuras
Se concentra este resumo
Na linha das três figuras
Há um fogo sem fumo.
Porque arde sem se ver
Na força que representa
São três nomes de mulher
Como se fossem noventa.
Multidão vista de perto
Vai a sacudir o Mundo
Um coro de peito aberto
Canta o que é profundo.
Páram na Rua Formosa
Onde antes houve jornal
Oficina poderosa
Tinha a Vida Mundial.
Era Modas e Bordados
Era Século Ilustrado
Os ardinas apressados
Corriam a todo o lado.
Mais acima a Faculdade
Agora é só Museus
Lisboa é uma cidade
De nunca dizer adeus.
Dá para um velho jardim
A recolher o disperso
É raro vermos assim
Resumo do Universo.
Vão cerejas numa caixa
Os limões as tangerinas
Vai a luz da Beira Baixa
O perfil das três meninas.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Leopold Kowalski)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Segunda cantiga catarinense



Segunda cantiga catarinense

Andorinhas pontuais
Nas casas do Palheirão
Partiram não voltam mais
As casas já lá não estão.
Vinham a fugir do frio
Paravam nestes beirais
O barro é do nosso rio
Entre bandos de pardais.
Quando a água era boa
Cada pedra o seu sabão
Se falava uma pessoa
É porque tinha razão.
Procuram outro lugar
Onde fazer o seu ninho
Cansadas de procurar
Voavam devagarinho.
Hoje na luz da cidade
O menino que era eu
Perdeu-se na saudade
Entre a terra e o céu.
Hoje homem ou mulher
No trânsito da nossa terra
Não sabe nem quer saber
Do que a cantiga encerra.   

José do Carmo Francisco

(Óleo de Amadeo Souza-Cardoso)