domingo, 25 de novembro de 2012

Balada da Calçada do Combro



Balada da Calçada do Combro (ou o «28» de Oleg Basyuk)

A Rua de todos os dias
Onde eu ia quatro vezes
E as noites mais sombrias
Demoravam como meses

Polícia à porta da Escola
A proteger as meninas
O amor era uma esmola
Pedida noutras esquinas

Poço dos Negros abaixo
Em cima era o Calhariz
Na memória que eu acho
Tudo é escuro e infeliz

Havia a guerra e o medo
Estava perto a inspecção
Um poema era segredo
Na Escola Veiga Beirão

Ao sábado até à uma
O trabalho continua
A bica de alta espuma
Espera por mim na rua

Manhã de segunda-feira
Vinte e oito na pendura
Uma vida verdadeira
Não se vive em ditadura

Nos cafés ao fim do dia
Os boatos são notícias
Falar é uma teimosia
À paisana são polícias

«Suplemento literário»
Quinta-feira nos jornais
Via o tempo ao contrário
Onde os sonhos eram reais

Passam já quarenta anos
Sobre mim sobre a calçada
Fora estes mitos urbanos
Parece que não houve nada

Excepto talvez a ternura
Que se gastou em excesso
A calçada é uma gravura
Mas virada do avesso

Onde até eu sou presente
Na multidão disfarçado
Estou no lugar da frente
Assim vou a todo o lado

Numa porta de Livraria
Vi Bocage em imagem
Na paragem da alegria
Acabou esta viagem

José do Carmo Francisco

(Óleo de Francisco Xicofran)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento


A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento

Não vejo nesta Sé a caixa com os ossos do meu bispo
Nem hoje nem em Agosto de 1961 quando aqui rezei
Pelos exames de admissão ao Liceu e Escola Técnica

Estranhei os sinos da Sé e os galos madrugadores
Mais que o colchão de palha tão igual ao do quartel
Que iria ter anos mais tarde nas Caldas da Rainha

Comecemos: nasci numa terra de escritores esquecidos
José António da Silva Rebelo não é só bispo de Bragança
Também é autor dum livro hoje na Biblioteca da Ajuda

Lembranças sobre a felicidade de Portugal foi escrito
No seu tempo de administrador da Casa Pia de Lisboa
E foi sem surpresa dedicado a D. Miguel no ano de 1828

Faustino do Rego em 1525 escreve sobre Ordem de Cister
E Manuel de Moraes sobre Francisco de Assis em 1735
Perdendo-se de seguida nas emboscadas do esquecimento

Na sacristia de Santa Catarina existe um retrato do bispo
Repousam os seus ossos na capela-mór de Almagreira
Onde terá morrido em 1846 à beira de completar 67 anos

Tudo começou no castelo de Leiria, no rei Afonso IV
Por isso a torre da Sé assenta numa sua velha porta
De onde se faz ouvir o som feliz dos seus oito sinos
  
Foi desviado o rio que passava dentro do claustro da Sé
Onde os cónegos pescavam os peixes do seu escabeche
E hoje há descargas da ganância das pecuárias sinistras

O pau-santo da sacristia veio de Belém do Pará, Brasil
Nos barcos vagarosos que levavam cantores de ópera
Músicos e guarda-roupa dos romances ainda por cantar

Há hoje a força do silêncio do Grande Órgão de 1997
Para dar mais realce aos painéis de Simão Rodrigues
E à sua Assunção de Nossa Senhora, nossa padroeira

E minha padroeira mesmo sem ter sido baptizado
Na capela do baptistério da nave lateral esquerda
Nem ter lavado as galhetas no fontanário da sacristia

Estas naves e capela são meu lugar de oração teimosa
Que a morte dos nossos parentes sabe sempre a injustiça
Ou antecipado ajuste de contas entre pecado e perdão                    

Em 1961 no Verão já se falava aqui nas três guerras
E grupos de mães procuravam favores de sargentos
Numas oficinas de Alverca, lá mais perto de Lisboa

Passei nos dois exames mas já estava no Comércio
Ouvi muitas vezes murmurar como quem censura
Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!

A luz de Deus entra nos vitrais, forte, justa, solene
Hoje como já em 1570 as naves gritam às capelas
O fervor da futura sagração quatro anos mais tarde

Entre as pedras e os sinais há um tempo que resiste
Forma-se uma procissão solene à porta da sacristia
O meu bispo vence as emboscadas do esquecimento

José do Carmo Francisco (31 Jan. 2011)            

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Pão, o Vinho, a Carne



O Pão, o Vinho, a Carne

Eu também comi desse pão e bebi desse vinho
Entre o sol e o pó na luz da tarde dum arraial
Eu era o rapazinho que transportava a carne
Na travessa com um ramo de louro por cima
Era eu que gritava Quem dá mais ó debotes!
Mesmo sem saber que devia dizer ó devotos!
Sem saber nada e não saber nada era ser feliz.
Era eu que tropeçava nas pedras soltas da rua
Debaixo do pálio ia com a naveta do incenso
Com o turíbulo a deixar no ar o imenso doce
Passando ao lado dos mais humildes currais
Onde os sons da filarmónica faziam responder
Todas as vozes de todos os animais da terra
Cansados dos seus trabalhos de todos os dias.
No fim da procissão logo começava o almoço
No fim do almoço tinha o coreto e a quermesse
Um copo de vinho amolecia as cavacas duras
O sol derretia todo o gelo na tina das gasosas
Enquanto eu derretia todos os tostões em rifas
E os músicos chamavam «marcha tripas a ferver»
À marcha militar «Stars and stripes for ever».
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
No pão, no vinho e na carne vendida num leilão
Havia em tudo a humidade das lágrimas de Deus
Porque só às crianças cabia o preço do resgate
Dum Mundo cada vez mais longe da Sua Luz
Onde as primaveras já não eram uma estação
Mas um cenário de plástico e de papelão cinzento.
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
Mas saber não era para mim o mais importante
Porque naquele tempo vivia a festa por dentro
Mas hoje já não há nenhum lugar para mim
Nem na procissão nem nas rifas da quermesse
Nem na mesa do almoço onde não está ninguém
Nem no coreto de onde todos os músicos fugiram.
O poema é uma candeia acesa no meio da noite
Quer ser uma oração a juntar o tempo que ficou
No lado de lá do vazio, da noite e da infância
Lá onde não há pontes a ligarem duas margens
Lá onde o poeta ajoelha num altar de sombras
Para rezar de novo nas mais longas ladainhas
Um poema tão triste, tão teimoso e tão tardio.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Caravagio)