sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Balada da Rua de Baixo

 



Balada da Rua de Baixo
 
Rua de Baixo, meu mundo
Onde eu regresso cansado
Quando o olhar é profundo
Já andou por todo o lado
 
São casas sem ninguém
De famílias desligadas
Não se ouve a voz da mãe
Na névoa das madrugadas
 
Meu berço e minha escola
Minha casa e minha igreja
O amor não pede esmola
Nas esquinas da inveja
 
Minha paisagem saudosa
Povoada por destroços
Duma sede mais gasosa
Que a água destes poços
 
Filarmónica formada
Manhã cheia de brancura
Há festa não tarda nada
Na rua desta amargura
 
Sete ondas repetidas
São sete beijos do mar
Na areia das nossas vidas
Já só podemos cantar
 
Pode-se cantar um fado
Feito só de melodia
Um homem fica calado
Ao ver a fotografia
 
Minha rua inicial
A vida, anos primeiros
Onde passou triunfal
A paixão dos baleeiros
 
José do Carmo Francisco

(Óleo de  Frederic Bazille)
 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Namorar uma cor: verde


Namorar uma cor: verde

Namorar uma cor…

São muito antigas as minhas ligações ao verde. A paixão dessa cor desde sempre escolhida como símbolo, como referência, como preferência, como fixação. Tal como na liturgia da Igreja, o verde é o sinal da renovação, da Primavera, da vida que se multiplica.

Namorar uma cor…

Como se namora uma pessoa, se marcam encontros, se sai à noite, se é e se faz tudo para se ser fiel.

Namorar uma cor…

Desde 1966 que, em Lisboa, mantenho, este namoro. Marco encontros de quinze em quinze dias no relvado do Estádio José Alvalade. Saio à noite nos jogos das competições europeias. Procuro ser fiel ao verde sem hesitações nem desânimos. Festejo as vitórias com muita alegria mas faço das derrotas uma reserva moral para partir ao encontro de novas vitórias. Apenas isso. Nem um sonho. Nem um drama.

Namorar uma cor…

Hoje como ontem gosto de ver o relvado sem ninguém. De vez em quando, sempre no fim da tarde, olho-o no grande silêncio. Vejo nele a sementeira das grandes emoções, dos grandes encontros, dos resultados felizes.

Hoje como ontem o verde é a direcção da Primavera, a presença da Esperança, o sentido da Vida a renascer. Sempre. Para sempre.

(Nota final – Este texto integra o livro «Futebol – iluminuras e textos consagrados» de Julho de 2004 (Editora Sete Caminhos) e foi recuperado em 7 de Outubro de 2020)        

[Crónicas do Tejo 261]

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Autor Desconhecido)


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Balada para Ruslam Botiev


Balada para Ruslam Botiev
 
Sempre que estava frio
Meio da correspondência
Tinha que ir ao Val do Rio
O patrão tinha paciência.
Pode ser o Ricardo Reis
Ou então Alberto Caeiro
Três que podem ser seis
Álvaro de Campos inteiro.
Além do próprio Pessoa
Entre mortos e feridos
Tem no mapa de Lisboa
Os sonhos interrompidos.
Todo o som que ele ouvia
No lugar do nascimento
São as sílabas da alegria
No poema do momento.
Poderia ser uma canção
Ou então uma filosofia
E continua a ter razão
Na porta da Tabacaria.
Uma Mensagem escrita
Para o Prémio Literário
E afinal está de visita
O Mundo é ao contrário.
Guardador de Rebanhos
Também fica no retrato
Há caminhos estranhos
Onde não cabe o contrato.
Este gato fica de fora
Do campo do retratista
Mas miou por uma hora
Para que ninguém resista.
No calendário de parede
Com três, número divino
Abel Pereira mata a sede
De quem decifra o destino.
 
José do Carmo Francisco
 
(Desenho de Ruslam Botiev)