quinta-feira, 22 de maio de 2014

Segundo poema para Manuel Fernandes (1986)


Segundo poema para Manuel Fernandes (1986)

Não lhe podem já tirar tudo
mas escondem-lhe o nome, os golos,
as vozes de quem, nas humildes casas
lhe grita o nome à volta do som dum rádio
nas tardes interrompidas dum quotidiano igual.
Não são homens – são sombras, escondem o rosto,
furtivos, fechados nos gabinetes, nos automóveis,
roubam os sonhos, decretam a morte civil
dum jogador assim perseguido sem porquê.
Não lhe podem já tirar tudo
ao menos ficam os troféus oficiais, as recordações,
as homenagens mais particulares
as fotografias dos jornais e os abraços
dos companheiros a correr do outro lado do campo.
Não são homens – são sinais dum castigo
que se perde no fundo do tempo, longe,
lá onde começou a primeira de todas as guerras
lá onde tábuas de morte se pregaram num coração.

José do Carmo Francisco    

(fotografia de autor desconhecido)

domingo, 11 de maio de 2014

Pranto e Lamentação para a Filipa em Maio


Pranto e Lamentação para Filipa em Maio

Eu oiço a voz calorosa do major Raúl Brandão
Na mesa mais distante do café da Faculdade
Sentada de costas vejo a princesa do mouchão
Que trouxe a luz do campo ao escuro da cidade.
Do que ficou das cheias formou-se um aluvião
Lodo, areia e matérias arrastadas nas correntes
A demora para processar esta nova situação
Leva milhares de anos vagarosos e pacientes.
Escreva sobre os Pobres lhe disseram numa casa
Num pátio de anarquistas numa noite de Lisboa
Filipa que estudava as palavras em fogo e brasa
Levou consigo a chave para decifrar uma pessoa.
Voltaremos todos nós a essa mesa mais distante
Do lado esquerdo da porta principal do edifício
Para saber o pormenor mais fino e importante
Da viagem iniciada ao esplendor do seu ofício.

José do Carmo Francisco    

(O óleo é de  Paco Ferrando)