segunda-feira, 26 de abril de 2021

Até Esse Momento


ATÉ ESSE MOMENTO

Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó
 
Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas
 
Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece
 
Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas
 
Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono
 
Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo
 
Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto
 
José do Carmo Francisco
 
(Óleo de Edward Hooper)


quarta-feira, 14 de abril de 2021

A sombra de Deus


A sombra de Deus

Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu filho Filipe pelo seu pequeno kispo azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a sombra de Deus.

Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada. Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do Hospital de Santa Maria.

Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida. Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.

Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza, que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal «os filhos da morta já não eram irmãos».            

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Valter Vinagre)