quarta-feira, 26 de junho de 2013

Quase fado para uma memória de 1972


Quase fado para uma memória de 1972

                                               a António Macedo com um abraço

Talvez se chamasse Margarida
Quando me olhou sem hesitar
Na varanda do hotel da Avenida
Para então sair da minha vida
Porque eu ia para a vida militar.
Não mais apareci no Instituto
Nas aulas nocturnas de inglês
Hoje contacto é dado absoluto
A mensagem demora um minuto
Escrita num ecran que tu não lês.
Talvez se chamasse Margarida
Colega de turma que não regressa
À varanda do hotel, à despedida
À lágrima que se solta arrependida
Da força comovida a toda a pressa.
Fui para as Caldas onde fiz a recruta
No Lumiar era a especialidade
Em Évora foram anos de labuta
Na Pontinha foi a grande luta
No Posto de Comando a Liberdade.


José do Carmo Francisco   

(fotografia de Autor Desconhecido)

sábado, 22 de junho de 2013

Anabela na Coelho da Rocha


Anabela na Coelho da Rocha

Uma lisboeta exilada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Tem saudades verdadeiras
Dos lugares e capelistas
Onde havia sardinheiras
E se compravam revistas

Plateia, Século Ilustrado
Flama, Crónica Feminina
Os homens iam para o lado
As mulheres junto à esquina

Onde grupos de varinas
Vendiam o peixe na rua
E no pó das oficinas
Dormia a sombra da lua

Onde ainda havia carroças
Petróleo, azeite, verduras
As batas brancas das moças
Eram luz das ruas escuras

Onde o vinho e o carvão
Se vendiam numa taberna
E os copos desse balcão
Brilhavam pela lanterna

Onde havia barbearias
E retratos pendurados
Falavam todos os dias
De jogadores admirados

Onde à noite os ardinas
Trazem notícias na mão
As palavras pequeninas
Não chegam ao coração

Eléctricos de atrelado
Com bilhetes de operário
Na paragem do passado
A vida anda ao contrário

Ninguém toca campainha
A dar o sinal de partida
No assento de palhinha
Está sentada a nossa vida

É uma vida misteriosa
Que fica por desvendar
E a poesia tão teimosa
Não desiste de cantar

Uma lisboeta isolada
Numa terra de nevoeiro
Chega ao fim da estrada
Fica no mês de Fevereiro

Casa Fernando Pessoa, 30-11-2006


José do Carmo Francisco 

(Óleo de João Beja)          

quarta-feira, 12 de junho de 2013

No cemitério da Vila


No cemitério da Vila

Por norma não há crianças nos funerais
Ali entre os cabouqueiros da saudade
As mulheres por natureza choram mais
Os homens fumam o cigarro só metade
Chega tarde o primo trabalha os olivais
Durante anos foi um homem da resina
Aos poucos apagam-se todos os sinais
No olhar de quem foi sempre menina
Nas irmãs para quem foi mãe pequena
Nas sobrinhas suas filhas na verdade
Na voz altiva porém sempre serena
Todo o amor era a maior prioridade
Mais alto, mais constante, mais forte
No seu olhar começava a luz do dia
Na manhã da vida dentro da morte
Descia da rampa o rumor da alegria


José do Carmo Francisco 

(Fotografia de Autor Desconhecido)

sábado, 8 de junho de 2013

Domingo à tarde em Falconwood


Domingo à tarde em Falconwood

O olhar do menino entrou no meu poema
E não mais saiu. Era um olhar sentido
Na revolta de uma exclusão cruel e súbita.
Sentado num banco frente à mesa da festa
não o deixam falar com os conhecidos
Entre vizinhos e colegas de turma na escola.
Quase tudo em seu redor era em miniatura  
locomotivas e linhas de volta à infância
Porque o carvão e os apitos são verdade. 
O olhar do menino era em ponto grande
e a sua dôr tinha o volume da sua idade /
Sete anos bem medidos no meu olhar.
Não era problema não o terem convidado
 mas sim a proibição de se aproximar 
E de comunicar com as crianças da festa.
Festa com pouco de muito recomendável
 além de bolos de fábrica e sumos de pacote 
Bebés e mães com problemas hormonais.
Vejo no menino de Falconwood o meu olhar
quando na minha vida outros me disseram 
Que queres daqui? - como quem bate a porta. 
E ao bater a porta deixam do lado de fora
os sonhos de quem, como eu, só queria fazer
Um breve recado sobre o tempo que passou.
Nos jornais, nas revistas e nas editoras
 nos encontros e desencontros das letras e da vida
Muitas vezes ouvi a pergunta - Que queres daqui?
Foi esse desprezo, essa vaidade, esse rancor
que eu vi hoje no olhar triste do menino 
Nos comboios miniatura de Falconwood.
Lá tudo é miniatura desde o fumo ao apito
desde as várias linhas às passagens de nível
Tudo menos o olhar do menino afastado. 


José do Carmo Francisco   

(Fotografia de Autor Desconhecido)