sexta-feira, 10 de julho de 2020

A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento



A Sé de Leiria ou 16 fragmentos de um esquecimento

Não vejo nesta Sé a caixa com os ossos do meu bispo
Nem hoje nem em Agosto de 1961 quando aqui rezei
Pelos exames de admissão ao Liceu e Escola Técnica

Estranhei os sinos da Sé e os galos madrugadores
Mais que o colchão de palha tão igual ao do quartel
Que iria ter anos mais tarde nas Caldas da Rainha

Comecemos: nasci numa terra de escritores esquecidos
José António da Silva Rebelo não é só bispo de Bragança
Também é autor dum livro hoje na Biblioteca da Ajuda

Lembranças sobre a felicidade de Portugal foi escrito
No seu tempo de administrador da Casa Pia de Lisboa
E foi sem surpresa dedicado a D. Miguel no ano de 1828

Faustino do Rego em 1525 escreve sobre Ordem de Cister
E Manuel de Moraes sobre Francisco de Assis em 1735
Perdendo-se de seguida nas emboscadas do esquecimento

Na sacristia de Santa Catarina existe um retrato do bispo
Repousam os seus ossos na capela-mór de Almagreira
Onde terá morrido em 1846 à beira de completar 67 anos

Tudo começou no castelo de Leiria, no rei Afonso IV
Por isso a torre da Sé assenta numa sua velha porta
De onde se faz ouvir o som feliz dos seus oito sinos
  
Foi desviado o rio que passava dentro do claustro da Sé
Onde os cónegos pescavam os peixes do seu escabeche
E hoje há descargas da ganância das pecuárias sinistras

O pau-santo da sacristia veio de Belém do Pará, Brasil
Nos barcos vagarosos que levavam cantores de ópera
Músicos e guarda-roupa dos romances ainda por cantar

Há hoje a força do silêncio do Grande Órgão de 1997
Para dar mais realce aos painéis de Simão Rodrigues
E à sua Assunção de Nossa Senhora, nossa padroeira

E minha padroeira mesmo sem ter sido baptizado
Na capela do baptistério da nave lateral esquerda
Nem ter lavado as galhetas no fontanário da sacristia

Estas naves e capela são meu lugar de oração teimosa
Que a morte dos nossos parentes sabe sempre a injustiça
Ou antecipado ajuste de contas entre pecado e perdão                    

Em 1961 no Verão já se falava aqui nas três guerras
E grupos de mães procuravam favores de sargentos
Numas oficinas de Alverca, lá mais perto de Lisboa

Passei nos dois exames mas já estava no Comércio
Ouvi muitas vezes murmurar como quem censura
Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!

A luz de Deus entra nos vitrais, forte, justa, solene
Hoje como já em 1570 as naves gritam às capelas
O fervor da futura sagração quatro anos mais tarde

Entre as pedras e os sinais há um tempo que resiste
Forma-se uma procissão solene à porta da sacristia
O meu bispo vence as emboscadas do esquecimento

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Autor Desconhecido)         

Sem comentários:

Enviar um comentário