sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Balada do cabo miliciano de 1972


Balada do cabo miliciano de 1972

Segunda incorporação
Setenta e dois era o ano
Um frio no coração
Dum cabo miliciano.
Era nas Linhas de Torres
Que a Escola do Lumiar
Ensinava outros horrores
Que não morrer ou matar.
Na Rua dos Mercadores
E na Rua do Raimundo
A escola sem professores
Era o tamanho do Mundo.
Num Hospital Militar
Diligência permanente
Nunca me viram chorar
À frente de muita gente.
Noventa escudos por mês
Era o pré duma trapaça
O medo valia por três
Na presumida desgraça.
Duma embocada tardia
Que podia ser matinal
E a família não sabia
Mas pagava o funeral.
Era assim que eu morria
Ou de uma outra maneira
Não teria ido a Leiria
Nem à Praia da Vieira.
Naufragou nesse Verão
Minha alma de soldado
Que colada ao coração
Foi com ele a todo o lado.
Não vi cruzes nem choro
Pelo anónimo do mar
Os homens vão para o coro
Ficam bem longe do altar.
Se morresse nesse dia
Quarenta anos depois
Nenhum de nós quem diria
Lembrava o nome dos dois.
O tempo passou depressa
Na mais negra geografia
Quando perdia a cabeça
E aos poucos eu morria.
Olho o passado defronte
Num balanço negativo
A linha do horizonte
Não me garante se vivo.
Como um filme ao contrário
O meu tempo se revela
A folha do calendário
E a sombra na janela.
Dessa casa da costura
Entre a eira e a estrada
Num registo de secura
Viagem do zero ao nada.

José do Carmo Francisco     

(Fotografia do autor)

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