sábado, 7 de março de 2015

Poema para os olhos de Maria Belmira


Poema para os olhos de Maria Belmira

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo todo o fulgor do olhar dos ranchos de ceifeiros. Mas não vi ceifeiros hoje nos campos entre a antiga fronteira de Badajoz e Montemor-o-Novo onde organizo este poema debaixo de uma árvore e perto de um jardim silencioso. Não vi os ceifeiros de Fialho de Almeida na terrível faina de terem sede, separados entre si por seis metros de distância e olhando ao longe os pássaros calados, os cães com a língua de fora, as éguas paradas e tristes, o ar cada vez mais pesado e mais raro.

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo a voz dos ceifeiros saídos directamente dos poemas de Francisco Bugalho – esses mesmos que foram escritos a meia dúzia de quilómetros de Castelo de Vide. Também não vi os ceifeiros deste poeta-lavrador, ceifeiros capazes de levantarem a voz mesmo contra o vento suão, mesmo contra o calor que não afecta a força da sua ternura ao manusear os braçados de espigas como quem tira um pão cozido da arca onde repousa na viagem entre a boca do forno e o branco da mesa.

Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus olhos quando regressasse do Alentejo uma paisagem povoada por gente viva mas os meus olhos cansados trazem apenas o pó das máquinas que deixam no seu caminho uma nuvem alta entre a linha do restolho e a linha do horizonte. Aquilo que poderia ser uma forma de conhecimento e de afecto fixa-se neste poema desolado no simples registo mecânico da passagem de uma máquina silenciosa pelo chão da seara exausta.

Peço desculpa. Eu próprio já não devia ter ilusões acerca do sabor do pão que se come hoje em dia. As máquinas cortam as espigas de outra maneira, noutro ritmo e noutra velocidade. Se formos juntar a esse factor a desvalorização da água, do sal e do fermento, percebemos melhor esta actual falta de sabor do pão nas nossas mesas tão cheias de pressa e tão vazias de ternura. 

José do Carmo Francisco

(O óleo é de Marcos Damascena)

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