quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Pão, o Vinho, a Carne



O Pão, o Vinho, a Carne

Eu também comi desse pão e bebi desse vinho
Entre o sol e o pó na luz da tarde dum arraial
Eu era o rapazinho que transportava a carne
Na travessa com um ramo de louro por cima
Era eu que gritava Quem dá mais ó debotes!
Mesmo sem saber que devia dizer ó devotos!
Sem saber nada e não saber nada era ser feliz.
Era eu que tropeçava nas pedras soltas da rua
Debaixo do pálio ia com a naveta do incenso
Com o turíbulo a deixar no ar o imenso doce
Passando ao lado dos mais humildes currais
Onde os sons da filarmónica faziam responder
Todas as vozes de todos os animais da terra
Cansados dos seus trabalhos de todos os dias.
No fim da procissão logo começava o almoço
No fim do almoço tinha o coreto e a quermesse
Um copo de vinho amolecia as cavacas duras
O sol derretia todo o gelo na tina das gasosas
Enquanto eu derretia todos os tostões em rifas
E os músicos chamavam «marcha tripas a ferver»
À marcha militar «Stars and stripes for ever».
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
No pão, no vinho e na carne vendida num leilão
Havia em tudo a humidade das lágrimas de Deus
Porque só às crianças cabia o preço do resgate
Dum Mundo cada vez mais longe da Sua Luz
Onde as primaveras já não eram uma estação
Mas um cenário de plástico e de papelão cinzento.
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
Mas saber não era para mim o mais importante
Porque naquele tempo vivia a festa por dentro
Mas hoje já não há nenhum lugar para mim
Nem na procissão nem nas rifas da quermesse
Nem na mesa do almoço onde não está ninguém
Nem no coreto de onde todos os músicos fugiram.
O poema é uma candeia acesa no meio da noite
Quer ser uma oração a juntar o tempo que ficou
No lado de lá do vazio, da noite e da infância
Lá onde não há pontes a ligarem duas margens
Lá onde o poeta ajoelha num altar de sombras
Para rezar de novo nas mais longas ladainhas
Um poema tão triste, tão teimoso e tão tardio.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Caravagio)

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