O Pão, o Vinho, a Carne
Eu também comi desse pão e
bebi desse vinho
Entre o sol e o pó na luz
da tarde dum arraial
Eu era o rapazinho que
transportava a carne
Na travessa com um ramo de
louro por cima
Era eu que gritava Quem dá mais ó debotes!
Mesmo sem saber que devia
dizer ó devotos!
Sem saber nada e não saber
nada era ser feliz.
Era eu que tropeçava nas pedras soltas da rua
Debaixo
do pálio ia com a naveta do incenso
Com o
turíbulo a deixar no ar o imenso doce
Passando
ao lado dos mais humildes currais
Onde
os sons da filarmónica faziam responder
Todas
as vozes de todos os animais da terra
Cansados dos seus trabalhos de todos os dias.
No fim da procissão logo
começava o almoço
No fim do almoço tinha o
coreto e a quermesse
Um copo de vinho amolecia
as cavacas duras
O sol derretia todo o gelo
na tina das gasosas
Enquanto eu derretia todos
os tostões em rifas
E os músicos chamavam
«marcha tripas a ferver»
À marcha militar «Stars and stripes for ever».
Era o Espírito Santo e eu nesse tempo não sabia
No
pão, no vinho e na carne vendida num leilão
Havia
em tudo a humidade das lágrimas de Deus
Porque
só às crianças cabia o preço do resgate
Dum
Mundo cada vez mais longe da Sua Luz
Onde
as primaveras já não eram uma estação
Mas um cenário de plástico e de papelão cinzento.
Era o Espírito Santo e eu
nesse tempo não sabia
Mas saber não era para mim
o mais importante
Porque naquele tempo vivia
a festa por dentro
Mas hoje já não há nenhum
lugar para mim
Nem na procissão nem nas
rifas da quermesse
Nem na mesa do almoço onde
não está ninguém
Nem no coreto de onde
todos os músicos fugiram.
O poema é uma candeia acesa no meio da noite
Quer
ser uma oração a juntar o tempo que ficou
No
lado de lá do vazio, da noite e da infância
Lá
onde não há pontes a ligarem duas margens
Lá
onde o poeta ajoelha num altar de sombras
Para
rezar de novo nas mais longas ladainhas
Um poema tão triste, tão teimoso e tão tardio.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Caravagio)
Sem comentários:
Enviar um comentário