domingo, 31 de maio de 2020

Balada das três meninas



Balada das três meninas

Vão cerejas numa caixa
Os limões as tangerinas
Vai a luz da Beira Baixa
O perfil das três meninas.
Vegetal mineral humano
São três mundos numa rede
Vamos já a meio do ano
Calendário na parede.
Nas razões mais obscuras
Se concentra este resumo
Na linha das três figuras
Há um fogo sem fumo.
Porque arde sem se ver
Na força que representa
São três nomes de mulher
Como se fossem noventa.
Multidão vista de perto
Vai a sacudir o Mundo
Um coro de peito aberto
Canta o que é profundo.
Páram na Rua Formosa
Onde antes houve jornal
Oficina poderosa
Tinha a Vida Mundial.
Era Modas e Bordados
Era Século Ilustrado
Os ardinas apressados
Corriam a todo o lado.
Mais acima a Faculdade
Agora é só Museus
Lisboa é uma cidade
De nunca dizer adeus.
Dá para um velho jardim
A recolher o disperso
É raro vermos assim
Resumo do Universo.
Vão cerejas numa caixa
Os limões as tangerinas
Vai a luz da Beira Baixa
O perfil das três meninas.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Leopold Kowalski)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Segunda cantiga catarinense



Segunda cantiga catarinense

Andorinhas pontuais
Nas casas do Palheirão
Partiram não voltam mais
As casas já lá não estão.
Vinham a fugir do frio
Paravam nestes beirais
O barro é do nosso rio
Entre bandos de pardais.
Quando a água era boa
Cada pedra o seu sabão
Se falava uma pessoa
É porque tinha razão.
Procuram outro lugar
Onde fazer o seu ninho
Cansadas de procurar
Voavam devagarinho.
Hoje na luz da cidade
O menino que era eu
Perdeu-se na saudade
Entre a terra e o céu.
Hoje homem ou mulher
No trânsito da nossa terra
Não sabe nem quer saber
Do que a cantiga encerra.   

José do Carmo Francisco

(Óleo de Amadeo Souza-Cardoso)

sábado, 9 de maio de 2020

Carteira Profissional



Carteira profissional

A minha Universidade
Foram todos os jornais
No Campo ou na Cidade
As palavras são os sinais.
E a espécie de diploma
Sem frequência ou acto
É uma secreta soma
O virtual bacharelato.
Cada livro um linguado
Ano de setenta e oito
Começava atrapalhado
Acabava já mais afoito.
Nos pavilhões e pistas
Gabinetes, lançamentos
Em notícias, entrevistas
Eram meus os momentos.
Hoje há crise na Imprensa
Leitores faltam na rua
A dúvida faz a diferença 
Mas a paixão continua.

José do Carmo Francisco

(Ilustração de Aniceto Carmona)

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Balada para uma valsa



Balada para uma valsa

Nasci a cinquenta e um
Lá em Santa Catarina
Sou um poeta comum
Tenho a voz pequenina.
Falta a força ou amplitude
Seja o timbre ou potência
E o poema não se ilude
Que a arte não é ciência.
Numa adega sem tecto
Abandonada e pequena
Logo mudou o aspecto
Nasceu a casa serena.
Não esqueço a madeira
Que serviu embarcação
A suportar uma lareira
Nas viagens da paixão.
Sou primo da prima Alice
Por parte do meu avô
Foi minha mãe que disse
Por tudo aquilo que sou.
Foi lá no Alto Alentejo
E quando Alice nascia
Que cresceu este desejo
De celebrar uma alegria.
Numa simples partitura
Um sentimento profundo
Que seja formosa e segura
Face ao desastre do Mundo.
Mas numa gaveta calada
Um neto fez da noite dia
A melodia bem datada
Esperava uma harmonia.
No acaso dum destino
O encontro logo deu fruto
Foi com maestro Adelino
Que a valsa ganhou estatuto.
Com os naipes bem afinados
Palhetas, cordas e metais
Com futuros multiplicados
Ovações não são de mais.

José do Carmo Francisco

(Oléo de Pablo Picasso)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Balada para Benedita



Balada para Benedita

Benedita abençoada
Benta é forma popular
O caminho é a estrada
Só agora vai começar.
O silêncio e o trabalho
O respeito e a oração
Tudo o que eu espalho
É base de uma canção.
Entre o verde e o céu
Entre o mar e o asfalto
O Mundo fica num véu
Não vem o sobressalto.
Neste Mundo pequeno
Cor-de-rosa pois então
É tudo calmo ou sereno
E só a Vida tem razão.
Vi linha de brinquedos
Nesta cama de repousar
Não tenho hoje segredos
Pois basta só ouvir o mar.
E sem eu partir à procura
Do afecto seu esplendor
Vem ter aqui a Ternura
E logo a seguir o Amor.

José do Carmo Francisco

(Óleo de Charles Boom)

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Rosa e Poseidon



Rosa e Poseidon

(poema autógrafo para António Manuel Venda)

São só as duas «caixas altas» do livro
São a flor e o navio, são a terra e o mar 
Das palavras e das viagens no oceano.
Terá sido o poeta Maiakowsky a lembrar
Serem todas as palavras mais frágeis
Do que flores pisadas depois do baile.
O vento que aqui espalha essas pétalas
É o mesmo a empurrar todos os veleiros
Na vaga liturgia dos poemas esquecidos.
Tudo o resto neste livro é «caixa baixa»
Nome de cidade e de província na Europa
Nome de automóvel de luxo nas estradas.
E sempre uma fotografia a preto e branco
Porque a cores são as do casamento actual
Já instalado no novo regime de «leasing».
É tudo a prazo, a festa, a quinta, as férias
E chamam crédito ao vulgar empréstimo
A fingir não saber que tudo tem um preço.

José do Carmo Francisco

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Balada para António (em 3 de Abril 2020)



Balada para António (em 3 de Abril 2020)

Neto António é a figura
Da festa que se anuncia
Há quatro anos que dura
A luz do primeiro dia.
Atendida uma distância
Criada pela pandemia
Não será a circunstância
Que vai esconder alegria.
E a coisa mais estranha
Numa festa diferente
O outeiro é a montanha
E quatro são muita gente.
Com devidas proporções
A festa tem mais beleza
Pelas tão diversas razões
Da Cultura e da Natureza.
E cada voz multiplicada
Por cinco e dez e vinte
Cresce sem dar por nada
Este efeito de requinte.
Dum microcosmo feliz 
Festa de anos pequena  
Naquilo que não se diz
Está toda a força serena
Dum menino organizado
Entre sonhos e conceitos
O seu Mundo é todo o lado
Mas com deveres e direitos.
E tudo é só uma memória
Dum lugar certo e preciso
A Patrícia lê nova história
A Ana abre porta e sorriso.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

sábado, 21 de março de 2020

Para os 128 anos da Filarmónica Catarinense



Para os 128 anos da Filarmónica Catarinense

(Poema autógrafo para Luís Almeida)

Primeiro eram as minhas lágrimas
No dia da Padroeira eu chorava
Porque não tinha visto o Peditório
E a Festa quase me passou ao lado.
Lágrimas da mãe do João Chicote
Ao entregar o seu querido menino
Ao meu avô e que o tratasse como
Se ele fosse mais um dos seus filhos.
Meu avô José Almeida era músico
Tocava trompete ou bombardino
Mas fazia caixões para os anjinhos
E usava lágrimas em vez de pregos.
Fosse na Granja Nova, no Carvalhal
Na Ramalhosa ou nas Alcobertas
Nós sem farda íamos fora também
E mesmo sem sair da nossa terra.
Primo Luís Freire fechou seu estojo
Não tocou mais e morreu em casa
Dois dias depois das fortes lágrimas
Da minha mãe no Domingo à tarde.
Só as trompas já eram um poema:
O Padre Castelão a falar ao Raposo
Vejo o Arnaldo e o David Funcheira
E todos os músicos do nosso passado.
Sem esquecer essas meninas todas
Melodias, contrapontos, harmonias
E capazes de salvar a Humanidade
Da sua morte já há muito anunciada.
Lembro meus tios Álvaro e Armindo
Meu tio-avô Joaquim com a tarola
As nossas lágrimas continuam a cair
Para eu trocar a Morte pela Vida.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)
    

domingo, 15 de março de 2020

Breve retrato de Ruslam Botiev



Breve retrato de Ruslam Botiev

No Domingo de manhã
No Chiado vi o artista
O seu nome era Ruslam
Passaporte de turista.

Pinta touros, cavaleiros
Luz da Mongólia natal
Gatos, pontes, mosteiros
São o Bom dia Portugal!

O Mundo visto ao contrário
Está na sede que se deseja
Ele num filme publicitário
Troca a noiva por cerveja.

Porca de Murça é passado
Nunca parou um segundo
Alfama é hoje o seu fado
E vai para todo o Mundo.

José do Carmo Francisco

(Quadro de Ruslam Botiev)

quarta-feira, 4 de março de 2020

Associação de Malfeitores



Associação de Malfeitores

Eu vi a morte do Jardim do Príncipe Real
Em vez da marcha fúnebre um saxofone
Ladrava ao céu como cão a chorar o dono.
Um turista reclamou ver o fim do jardim
Logo vereador alucinado decretou plano
Para acabar mesmo com o dito cujo jardim.
Foram sessenta e quatro árvores mortas
Alguns ainda diziam que estão doentes
Mas doentes são eles todos em delírio.
Desta associação já tenho eu uma conta:
Editaram livro meu com um veleiro na capa
Não eléctrico, autocarro, elevador, cacilheiro.
No Verão uma responsável veio proibir
Uma caixa de gelados nesta esplanada
Por razões estéticas. E eu espero o pior. 
 
José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)