As mãos da mulher-menina na igreja de Ruslam Botiev
As mãos da mulher-menina são um búzio no qual se ouve o
rumor antigo da cidade, seus pregões do passado (Fava rica!, Viva da Costa!,
Ferro velho!), seus apitos de sinaleiro e campaínhas de eléctrico com atrelado
no trânsito febril, sua espuma branca no estuário do Rio Tejo atrás dos velozes
rebocadores.
Há nestas mãos um calor inesperado, talvez resíduo do
primeiro fogo da manhã, o que acendeu o dia, aqueceu o leite e o pão depois de
secar as lágrimas de quem chegou exausto à manhã, cansado dos pesadelos da
noite e das suas peripécias. Há nestas mãos um refúgio, um reduto, uma mina. As
memórias, os sentimentos, a água fresca, tudo se conjuga para apaziguar o
espírito inquieto pelas dúvidas do quotidiano hostil. Há nestas mãos um
separador entre paisagem e povoamento, entre terra e mar, entre luz e
escuridão. Aqui nasce a ternura, sua humidade e sua força por vezes inesperada.
Há nestas mãos o som de um clarim, o ritmo de um tambor, uma ordem unida a
convocar os dispersos elementos sentimentais para um piquete de bisonhos
sapadores da alegria teimosa que, mesmo nos momentos mais cinzentos, empurra o nosso
tempo interior para as praças onde a cidade reconhece e proclama o seu alfabeto
de luz e a sua gramática de alegria.
As mãos da mulher-menina juntam-se ao fim do dia quando
se ouve o sino de uma igreja perto do Cais dos Soldados as convocar as palavras
mais obscuras para uma oração que junta de novo tudo o que a morte
separou.
José do Carmo Francisco
(Aguarela de Ruslam Botiev)
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