A água de 1956
Na manhã de Abril
quando não me disseram
(nem poderiam ter dito)
«A tua mãe morreu»
Porque (todos o sabemos)
as mães de facto não morrem
apenas o seu corpo se esconde
nos degraus da terra e do silêncio.
Nessa manhã de Abril
senti que toda a terra
secou
não toda a terra mas
apenas
a que ficou entre os meus
pés
e a terra propriamente
dita.
Lembrei-me então de como
essa secura só poderia ser
de facto resolvida pela água
uma certa água de 1956
trazida em cântaros vermelhos
do Poço do Povo para os louceiros
com dois intervalos para o bojo.
Havia um pano branco a
tapar o sol
que entrava por uma telha
de vidro.
Havia uns papéis com
motivos berrantes
a servirem de naperon nas prateleiras.
Havia o ar, o peso do ar
de 1956
e só a memória desse ar me
segurou.
Havia uma rodilha feita de
um lenço azul
comprado na Feira Grande
de Rio Maior.
Havia (enfim) a água de
1956
aquela que hoje me poderia
matar a sede
ou resolver de vez a
secura da terra
debaixo dos meus pés
suspensos
como naquela manhã de
Abril.
José do Carmo Francisco
(Fotografia do arquivo
pessoal de JCF)
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