terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A água de 1956



A água de 1956

Na manhã de Abril
quando não me disseram
(nem poderiam ter dito)
«A tua mãe morreu»
Porque (todos o sabemos)
as mães de facto não morrem
apenas o seu corpo se esconde
nos degraus da terra e do silêncio.
Nessa manhã de Abril
senti que toda a terra secou
não toda a terra mas apenas
a que ficou entre os meus pés
e a terra propriamente dita.
Lembrei-me então de como
essa secura só poderia ser
de facto resolvida pela água
uma certa água de 1956
trazida em cântaros vermelhos
do Poço do Povo para os louceiros
com dois intervalos para o bojo.
Havia um pano branco a tapar o sol
que entrava por uma telha de vidro.
Havia uns papéis com motivos berrantes
a servirem de naperon nas prateleiras.
Havia o ar, o peso do ar de 1956
e só a memória desse ar me segurou.
Havia uma rodilha feita de um lenço azul
comprado na Feira Grande de Rio Maior.
Havia (enfim) a água de 1956
aquela que hoje me poderia matar a sede
ou resolver de vez a secura da terra
debaixo dos meus pés suspensos
como naquela manhã de Abril.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia do arquivo pessoal de JCF)

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