Pequeno retrato dum olhar de mulher
Existe, no olhar cansado
de Fernanda, uma pequena mas dolorosa percentagem de melancolia. Como se
surgisse, no seu campo visual, para além de eléctricos cheios como cachos de
uvas, uma luz cinzenta capaz de tudo reduzir a escuro, a estranho e a triste.
Um telefone sacode a monotonia da tarde. São pequenas conversas, pedidos de
ajuda, desabafos, ligeiros acrescentos a outras conversas já passadas mas,
afinal, sempre presentes. Ao fundo os livros arrumados nas estantes esperam de
Fernanda a demorada atenção de quem sabe uma verdade essencial: depois da
invenção da roda só o livro se pode comparar em importância na vida do Mundo. A
roda deu origem a todas as viagens; o livro partilhou todas as aventuras do pensamento.
Existe, no olhar cansado de Fernanda, uma busca incessante de harmonia. Aos
poucos a porta da livraria transforma-se num quadro onde as personagens se
cruzam ao ritmo de uma marcação teatral. Como se cada toque de campainha de
eléctrico fosse um relógio a dar as suas badaladas para acordar Fernanda da sua
melancolia. Existe, no olhar cansado de Fernanda, o prenúncio de um novo
povoamento do seu espaço. A rua vai ficar mais alegre, as cores das pessoas e
das coisas vão mudar, o tempo vai ter um ritmo de alegria e de descoberta, o
calor do Verão vai trazer uma nova cadência aos dias de Fernanda que percorre,
aos poucos, um caminho de imprevistas emoções.
Existe, no olhar cansado
de Fernanda, uma inquieta mas teimosa procura de outros ritmos de vida e de
outros lugares de ser. Onde seja possível conjugar todos os verbos de uma nova
gramática de sons. Mais vivos, mais quentes, mais inteiros e mais felizes.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Fréderick Carl Friesske)
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