A voz de Cristina
Começa o dia num sussurro
matinal mas, aos poucos, aumenta o seu volume, amplia o timbre e, quando sai de
casa a caminho do trabalho, a voz de Cristina é já uma bandeira de alegria e de
coragem para enfrentar todos os obstáculos e todas as confusões do seu e nosso
quotidiano. A voz de Cristina é límpida, cheia, alta e traz no seu desenho
sonoro um calendário de afectos. Ouvir a sua voz é sentir as memórias e os
perfumes da chuva de Janeiro, do frio de Fevereiro, da geada de Março, das
flores de Abril, das trovoadas de Maio, das cantigas de Junho, da calor de
Julho, do luar de Agosto, das vindimas de Setembro, das folhas secas de
Outubro, das azeitonas de Novembro e das lareiras de Dezembro. Todas as quatro
estações do ano entram e permanecem na voz de Cristina. Durante o dia, porém, a
voz de Cristina suspende a musicalidade e transforma-se num instrumento de
trabalho: da sua maneira de falar, acolhedora e eficiente, dependem ligações
telefónicas essenciais à transmissão de notícias vindas de todos os
continentes. Resultados desportivos, transferências de jogadores, as grandes
esperanças sempre renovadas no início da época desportiva. Ao fim da tarde a
voz de Cristina é, ela mesma, uma notícia. A notícia de um regresso a casa, das
tarefas transparentes dum ofício sem remuneração, do inventário e do balanço do
dia da filha Raquel.
A noite fecha o ciclo dos
tons da sua voz. O cansaço de mais um dia de trabalho traz à voz de Cristina
uma lenta suspensão e um ritmo cadenciado que, aos poucos, se vai aproximando
do registo do seu primeiro sussurro matinal. Um som como que saído da limpidez
da água pura, distante e intocada das origens do Mundo.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Amedeo Bocchi)
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