quarta-feira, 15 de março de 2017

Projecto de canção para Cristina


Projecto de canção para Cristina

Fechada numa pequena sala quadrada de paredes brancas, Cristina sente ao longe a gramática das viagens: pela janela entreaberta entra o som estridente de navios de carga a avisarem os pequenos cacilheiros da sua passagem rumo ao limite do Mar da Palha e, logo a seguir, ao grande espaço do Oceano Atlântico.
Depois é o musgo verde a cheirar e a crescer no prédio em frente fazendo o elogio da força da água e das recentes chuvas que começaram em Setembro do ano passado e só pararam em Abril deste ano. Quando vento está no quadrante norte chega ao lugar de Cristina um sabor a lenha queimada. Começou por não saber mas hoje Cristina sabe que existe uma padaria por perto, numa rua onde camionetas vindas de fora descarregam semanalmente carradas de ramos verdes de pinheiro.
No Inverno, quando chove, Cristina tem que fechar as janelas e nesse gesto sufoca o movimento dos cheiros a refogado, a guisado ou a batatas fritas pois há vários restaurantes nas redondezas. No tempo actual já não há vendedores, já ninguém apregoa os figos, a fava-rica, o peixe fresco, os jornais. Cristina contempla da janela, com alguma melancolia, a memória antiga desta rua, uma paisagem povoada por gente que partiu e não voltou.
No Verão, pelo contrário, Cristina abre as janelas como se esperasse a camioneta comas as bilhas da água de Caneças, a sua rolha de cortiça presa por uma guita a servir de selo de garantia. Cristina gostaria de juntar numa canção todas as memórias e todos os momentos. Uma canção lente e feliz na qual as palavras não ardessem de ansiedade. 

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)

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