Projecto
de canção para Cristina
Fechada numa pequena sala
quadrada de paredes brancas, Cristina sente ao longe a gramática das viagens:
pela janela entreaberta entra o som estridente de navios de carga a avisarem os
pequenos cacilheiros da sua passagem rumo ao limite do Mar da Palha e, logo a
seguir, ao grande espaço do Oceano Atlântico.
Depois é o musgo verde a
cheirar e a crescer no prédio em frente fazendo o elogio da força da água e das
recentes chuvas que começaram em Setembro do ano passado e só pararam em Abril
deste ano. Quando vento está no quadrante norte chega ao lugar de Cristina um
sabor a lenha queimada. Começou por não saber mas hoje Cristina sabe que existe
uma padaria por perto, numa rua onde camionetas vindas de fora descarregam
semanalmente carradas de ramos verdes de pinheiro.
No Inverno, quando chove,
Cristina tem que fechar as janelas e nesse gesto sufoca o movimento dos cheiros
a refogado, a guisado ou a batatas fritas pois há vários restaurantes nas
redondezas. No tempo actual já não há vendedores, já ninguém apregoa os figos,
a fava-rica, o peixe fresco, os jornais. Cristina contempla da janela, com alguma
melancolia, a memória antiga desta rua, uma paisagem povoada por gente que
partiu e não voltou.
No Verão, pelo contrário, Cristina abre as janelas como se esperasse a
camioneta comas as bilhas da água de Caneças, a sua rolha de cortiça presa por
uma guita a servir de selo de garantia. Cristina gostaria de juntar numa canção
todas as memórias e todos os momentos. Uma canção lente e feliz na qual as
palavras não ardessem de ansiedade.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de Luís Eme)
Sem comentários:
Enviar um comentário