Os olhos de Cristina
Inquietos, sacudidos pelo
bulício da cidade antiga, os olhos de Cristina vieram da cidade nova e são dois
faróis a avisarem a navegação das próximas tempestades quotidianas. Cristina
saiu da estação do Metro da Baixa-Chiado e atravessou a muralha mandada
construir por D. Fernando para beber um café e comer um bolo. Vista ao longe,
diluída na pressa dos semáforos, Cristina não é apenas uma mulher. É também a
imagem de uma cidade. Cidade habitada por afectos, cruzada por ruas de sonhos,
por praças projectadas na vontade de ser feliz. Se Lisboa é uma cidade-mulher,
luminosa e pronta a ser conquistada todas as manhãs, Cristina é uma
mulher-cidade e os seus olhos, ora inquietos ora serenos, são as portas dessa
cidade luminosa mas apenas existente nas metáforas e nas imagens. À direita, o
Rio Tejo dá nos olhos de Cristina a ilusão de estar colocado nos últimos
telhados da Rua do Alecrim. («Alecrim, alecrim aos molhos, por causa de ti choram
os meus olhos» – diz a cantiga popular. Adiante.) Os cacilheiros, repletos de
pessoas e de viaturas parecem desaguar num cais insólito feito de telhas
antigas e de gaivotas ruidosas. Para o fim da tarde, no regresso a casa na
cidade nova, os olhos de Cristina estão serenos pelo cansaço e pela presença
luminosa de Raquel, sua filha. Se de manhã se juntou a cidade-mulher (Lisboa) à
mulher-cidade (Cristina) então de tarde vemos que a mistura feliz é da
mulher-menina (Cristina) com a menina-mulher (Raquel). Os olhos de Cristina,
motivo do texto, são uma espécie de selo branco que vai certificar o momento
feliz de encontro e de plenitude que esta crónica procura representar. Ou seja:
dar um testemunho feito de palavras resgatadas à pressa da cidade.
José do Carmo Francisco
(Fotografia de Luís Eme)
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